O Estado da Arte SHIPIBO – Uma Experiência Extática
Por: Fernando Feital • 4/3/2020 • Ensaio • 3.831 Palavras (16 Páginas) • 178 Visualizações
O estado da arte SHIPIBO – uma experiência extática.
Quando fui informado de que a coletividade a qual participo receberia uma cerimônia Shipibo considerei a possibilidade de estar lá. Muitos arranjos são necessários para que tudo transcorra de modo a se compor uma cerimônia como esta, onde a centralidade se dá em torno da bebida Ayahuasca. O principal arranjo está na intencionalidade, ao se intencionar estar em uma cerimônia o buscador estabelece imediatamente um vínculo com o xamã - embora ainda não o conheça - e além, com os demais buscadores que também irão formar o grupo cerimonial. As impressões a seguir dizem respeito de meu encontro com maestro Brígido Mahua, da etnia Shipibo-Conibo, em 18 de outubro de 2019.
Morin (1998) afirma que povo Shipibo-Conibo forma parte do conjunto linguístico Pano, seu território se estende em ambos os lados das fronteiras entre Peru, Brasil e Bolívia. Embora se denominem Jónibo “os homens” ou, Jónicobo “os verdadeiros homens”, atualmente aceitam e adotam o exônimo Shipibo-Conibo – cuja tradição oral informa terem recebido em consequência da prática de pintar toda a face com tinta preta de jenipapo, nane, ficando assim parecidos com Shipi = macaco ou com os Coni = Peixe. Adoção que aponta para uma evidente reinvindicação valorativa de sua identidade étnica, ou em outras palavras estão exercendo resistência mimética.
Após ter intencionado meu encontro preparei um rezo com o cachimbo. Ganhei meu Petyngua ou Chanupa de um professor, o Primo, que o confeccionou manualmente e de modo tradicional num formato que lembra o de um animal de poder. Quando fui iniciado no estudo do cachimbo recebi o bom conselho de ter cuidado: a união do masculino representado pelo caniço, e do feminino, representado pelo fornilho e, consagrado o tabaco sempre voltado para o coração, são uma poderosa fonte de conhecimento, pedir/merecer/receber os bons conselhos. A fumaça com o pedido do buscador se eleva ao universo abrindo assim os canais inter-reinos e entre-mundos. Nesta oportunidade o rezo, minha pergunta, disse respeito à minha própria trajetória com a Ayahuasca. Nas três semanas seguintes, entre a intensão de participar e a cerimônia, realizei uma dieta que, para mim, passa por algumas restrições de diversas naturezas. Também fui ensinado que cada xamã, cada grupo, cada ritual, requer uma dieta específica. Para saber qual é, é importante estar atento aos sinais e às sincronicidades, ouvir o corpo, ou então, seguir à risca quando a mesma for prescrita pelo xamã ou maestro.
No dia da cerimônia parti de São Jose dos Campos no fim da tarde para não pegar a estrada a noite. Levei comigo uma bolsa com água, maçã, mandioca cozida, um colchonete e uma manta de lã. Após três anos em trânsito entre minha casa, o Pimentas e a comunidade do Ribeirão Grande aprendi que menos bagagem significa mais liberdade. Ao chegar lá fui direto cumprimentar os irmãos da casinha, lá estavam alguns, Luara, Rodrigo, Diego, David e Brendo.
A casinha é residência dos irmãos que vivem ou que passam longas temporadas na comunidade, eles são responsáveis pela manutenção dos espaços, e atividades como coleta de lenha, capinagem do mato, captação de água da montanha entre outras muitas tarefas. Lá, a conversa girava em torno das rotinas, um irmão acendeu um tabaco e compartilhou na roda, enquanto outro desfolhava um maço de manjericão muito perfumado recém colhido. Ríamos quando se cogitava a formação do “sindicato dos moradores da casinha” numa referência imediata a uma tomada de consciência de classe e, por seu caráter transitório seus moradores mencionavam a importância de se associarem na elaboração de registros históricos em benefício, inclusive, dos próximos moradores que ainda estão por vir ocupar o espaço.
Com os irmãos da casinha sempre tive uma relação muito próxima e de respeito, minha natureza viado nunca foi uma questão prioritária ali como pareceu ser em outros grupos da comunidade. A acolhida e aproximação se deu em partes pela primeira coisa que aprendi com eles: compartilhar o alimento excedente da cantina, então, muitas panelas com caldo de mandioca subiram para casinha retornando impreterivelmente no trabalho seguinte lavadas e com um abraço em gesto de agradecimento mutuo. Em seguida a aproximação foi se construindo em torno das histórias de vida, principalmente dos pontos em comum entre a minha própria e a deles, entre os quais a recusa de certos valores hegemônicos e impositivos da sociedade e a busca pelo estabelecimento de relações saudáveis em um planeta adoecido. Neste sentido sinto que nos reconhecemos muitas vezes.
Com eles também aprendi os versos da canção Nyahbinghi
Jah abençoa no sol da manhã
Jah abençoa no sol da manhã
Bem cedo
Aie, oia
Jah abençoa no sol da manhã
Jah abençoa no sol da manhã
Oh rasta tu pode ver se quiser ver
Tu podes sentir se quiser sentir
Segundo Araújo (2016) Nyahbinghi é um rito cerimonial rastafári. Sua origem é controversa, e citando Howell, seu nome remete a existência de uma princesa ruandense, “Princesa Nyahbinghi”, morta em batalha contra a ocupação colonial em África. Os princípios Nyahbinghi pregam amor a todos os seres humanos e não acreditam na solução violenta já que apenas o Criador tem o direito de destruir. Nyahbinghi faz essa promessa por causa do poder das palavras e, somente quando todos os filhos de Jah fizerem a promessa juntos, os opressores serão destruídos. Nas últimas cerimônias xamânicas da comunidade a qual pertenço os cantos Nyahbinghi vem sendo incorporados ao ritual com Ayahuasca numa abertura típica daquela identificada por Labate (2004), e já citada, como a estratégia de vitalidade da expansão do Santo Daime.
Não só de força bruta se dá o trabalho dos irmãos da casinha. Quando estão no salão do Santo Daime seu trabalho se apresenta na forma da mais fina etiqueta. Se estão certas as palavras da madrinha Ana “Padrinho Sebastião já dizia: grandeza espiritual é antes de tudo educação espiritual”, então estes irmão são motivo de grande inspiração por sua postura dentro do trabalho com o Daime. Durante o dia trabalhadores braçais, rudeza, mão na inchada pé no barro, durante a noite trabalhadores delicados, mão no maracá pé no bailado. Este é o maior ensino compartilhado entre nós.
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