O Doido e a Morte - Raul Brandão
Por: Zorko • 27/10/2017 • Artigo • 1.925 Palavras (8 Páginas) • 1.757 Visualizações
Ciclo de Conferências Raul Brandão
Instituto de Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Outubro de 2017
O Doido e a Morte
Carlos Alberto M. Gomes Mota,
UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia e Instituto de Filosofia da FLUP).
1) Breves notas sobre Raul Brandão.
O autor de "O Doido e a Morte" é hoje, pouco falado, até mesmo bastante esquecido.
Tratamos de alguém nascido na Foz do Douro a 12 de março de 1867 e falecido em Lisboa a 5 de dezembro de 1930, aos 63 anos de idade. Não sendo, naquele tempo, uma idade muito curta, também mesmo assim não era uma idade longa.
Raul Brandão foi um personagem rico e até multifacetado. Após concluir o Ensino Secundário, frequentou o Curso Superior de Letras, inscrevendo-se de seguida, na Escola do Exército, depois do que foi colocado no Ministério da Guerra, onde permaneceu bastante tempo. Destaca-se a sua colaboração no semanário O Micróbio (1894-1895) e nas revistas Brasil-Portugal (1899-1914), Revista nova (1901-1902), e Serões (1901-1911).
Em 1896 foi enviado para o Regimento de Infantaria de Guimarães, cidade onde conheceu Maria Angelina de Araújo Abreu, com quem casou, não tendo tido filhos. Em 1912 reformou-se das Forças Armadas como major, continuando a sua obra literária.
Terá sido influenciado por Dostoievski e Unamuno e influenciou Vitorino Nemésio e Vergílio Ferreira. "Para este seu gosto pelo indefinido e o que há de tortura na existência, aproxima-se dos russos. Dostoievski, Gorki, algum tanto de Tolstoi não deixaram de impressioná-lo. Escreveu Gomes Freire, El-rei Junot, Humus, A farsa, os dois volumes de memórias, Os Pescadores, As Ilhas Desconhecidas, várias peças de teatro como O Maior Castigo, O Gebo e a Sombra, O Doido e a Morte, O Avejão, Jesus Cristo em Lisboa (em parceria com Teixeira de Pascoaes). A sua obra não é extensa mas é complexa. Raul Brandão era um revolucionário flutuando entre Kropotkine e Jesus." [1]
2) Análise à obra O Doido e a Morte
Não farei uma análise baseada noutras. Tal é pouco produtivo. Será mais interessante procurar uma análise nova, lacunar, sem dúvida, mas mais interessante porque um autor vai sendo lido e relido com o tempo, permanecendo com essas novas leituras atual.
No contexto da Filosofia em Portugal não penso ter Raul Brandão grande peso. Já no campo da Literatura a questão será diferente e vale a pena escutar o autor, inclusivamente fazer um cruzamento de leituras entre a Filosofia e a Literatura.
A peça de teatro que analisei, O Doido e a Morte, contém particularidades interessantes. Trata-se de uma obra de pequeno porte (aparente). De facto, em poucas páginas o autor descreve um contexto que tem a ver com a vida humana, a situação de cada um de nós na sua breve e contingente existência, recorrendo para isso a pouquíssimas personagens e - também aparentemente - a poucas ideias, pouca originalidade e a uma espécie de "esquema" diretor do trabalho, anunciado no começo do texto [2]
O autor descreve o seu escrito como "farsa em um acto", sabendo-se que farsa é um género teatral de caráter caricatural. O próprio Brandão torna o escrito reduzido pois nele encontramos apenas quatro personagens com importância: o Sr. Milhões, o Governador Civil, D. Ana Baltazar Moscoso e Nunes, Polícia.
Porém, depois de nos apresentar a sua própria obra de forma esquemática, aparentemente linear e pobre, Raul Brandão consegue, em poucas páginas, que se presume serem de rápida leitura/interpretação enquanto peça de teatro, remeter o leitor (ou espectador) para problemáticas existenciais de tipo global que de há muito apoquentam o ser humano. O sentido da existência perpassa todo o texto, bem como a sua faceta de farsa: a mentira, a teatralização das relações humanas, a artificialidade da hierarquia social sempre muito valorizada em sociedades retrógradas ou rígidas de qualquer tipo, os dilemas em torno da "representação" de papeis, o medo, fator comum a qualquer ser humano - que ultrapassa outras questões - pois o medo é também real - não é apenas "farsa". Tudo isso consegue ser trazido por Raul Brandão à escrita, em poucas linhas, sem necessidade de grandes discursos, ou da utilização de jargão complicado.
Parece ser este outro aspeto extremamente importante deste escrito. Brandão utiliza uma linguagem simples, popular, conseguindo, com facilidade surpreendente, chegar a ideias profundas, normalmente tratadas de forma bem mais complicada e difícil de entender pelo grande público. A questão referente à exiguidade da nossa importância está presente em obras consagradas da Filosofia e da Literatura mundiais. "Guerra e Paz", a obra de Sartre, os escritos de Camus, são disso exemplo (embora os próprios exemplos sejam muitos).
Brandão consegue sempre, ao longo do texto "ligar" o estado de "grandeza" - ou suposta grandeza - ao pavor que tolhe a ação - medo ridículo quando se percebe não ter fundamento - quiçá uma situação muito mais generalizada do que habitualmente pensamos. Todo o poder - aqui dissecado no micro poder de um Governador - tem muitíssimo de representação, simbolismo e encenação, como todos nós vamos melhor compreendendo à medida que os estudos sobre esse aspeto das nossas vidas vão produzindo resultados.
A forma como Raul Brandão descreve com maestria o poder/pavor do Governador e seus acompanhantes, reduzindo-os a caricaturas teatrais, será o retrato da maioria de nós. Há aqui um traço de ironia anárquica - o tal traço de Kropotkine de que nos falam em Brandão. Há sempre, ao longo do texto, uma fina ironia, uma crítica mordaz aos poderosos, exercido desde o tempo dos faraós ao dos totalitários do século XX - o mesmo tipo de poder simbólico, mas nem por isso menos terrível nem destruidor.
O Governador, tão seguro de si, é ameaçado pelo "peróxido" nem sequer nunca lhe mostrado pelo rico Sr. Milhões. Recebera o Sr. Milhões por ele ser rico e poderoso e este - incrivelmente - assumira um comportamento de bombista anarquista!
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