O Tempo na narrativa platônica da criação: o Timeu
Por: Gerceu Ricarte • 29/10/2017 • Artigo • 5.665 Palavras (23 Páginas) • 262 Visualizações
“O Tempo na narrativa platónica da criação: o Timeu”
1. Dualismo e fenomenologia
O Timeu constitui uma peça única no Corpus, estilística e doutrinalmente. O longo discurso da personagem epónima do diálogo pode ser entendido como a tentativa de Platão de esboçar uma concepção de saber global, versando questões de Cosmologia, Ontologia, Física, Antropologia, Biologia e Teologia, de uma perspectiva original ou alimentada por fontes não identificadas.
A sua primeira finalidade parece ser a de enquadrar o saber contemporâneo, particularmente no domínio da Cosmologia, no núcleo da proposta epistémica, dominada pelas chamadas teorias das Formas e da anamnese. Tal objectivo é atingido mediante:
1) a adequação da síntese esboçada às propostas do Fédon, Fedro e República.
2) a crítica da tradição pré-socrática.
Comecemos pela primeira. Se aceitarmos a hipótese segundo a qual só as Formas inteligíveis causam e explicam os fenómenos (Fédon 100a-105c), somos obrigados a prescindir da observação directa do mundo exterior (Fédon 95c-99e). Que compreensão dos fenómenos se poderá então conseguir? Não haverá um resíduo intrinsecamente sensível, irredutível à inteligibilidade?
O Timeu responde às perguntas, argumentando fenomenologicamente. Harmoniza a mutabilidade sensível com o modelo eterno, perfeito, imutável e vivo, das Formas inteligíveis, postulando, entre o teleologismo da Inteligência (nous) e o mecanicismo da “causa errante”, a “persuasão” de uma pela outra:
“... a geração deste mundo ordenado foi uma mistura, uma vez que foi gerado por acção conjunta da necessidade e do pensamento; mas o pensamento governava a necessidade, persuadindo-a a orientar para o melhor a maior parte das coisas geradas; e foi assim, e de acordo com este processo, através da submissão da necessidade, por via de uma sábia persuasão, que este nosso universo foi constituído desde o princípio[1]”(47e-48a; vide Phd. 99a-c).
Do ponto de vista metodológico, a oposição onto-epistemológica do Ser e Razão, de um lado, à aparência e sensibilidade, do outro, é superada pelo discurso plausível. Partindo de uma análise do visível, o objectivo deste será mostrar como a Inteligência consegue impor unidade e finalidade à desordem mecânica.
Tal como a Inteligência “persuade” a causalidade mecânica, a teoria das Formas enquadra a experiência sensível, buscando na pesquisa da regularidade do cosmo a chave que permitirá salvar as aparências fenoménicas. O projecto requer a introdução de uma série de conceitos operatórios, cuja finalidade será explicar como a ordem cósmica submete o visível[2].
2. A narrativa da criação
Seguindo o texto. Na sequência do estabelecimento da oposição onto-epistemológica do ser racional à geração e corrupção sensível[3] (27d-28a), é afirmado o princípio de causalidade de toda geração (28a). A pergunta sobre a natureza do modelo em que se terá inspirado o demiurgo – eterno ou gerado? (28a-b) – é dirigida à natureza do cosmo.
Em virtude do princípio da causalidade (28a4-6, 28c2-3), o cosmo terá de ter sido “gerado” (28b), por ser “visível, tangível e ter um corpo” (28b8-9; b9-c2). Teve, portanto, um criador[4] (28c). Porém, se a obra é bela e o criador bom, este deverá ter-se inspirado no modelo eterno e imutável[5] (29a).
Todavia, a cadeia dedutiva terá de atender a uma reserva metodológica. Enquanto os raciocínios sobre o ser são irrefutáveis e inabaláveis, os dirigidos à cópia do ser serão apenas verosímeis[6] (29b-d). Estabelecidos estes princípios e suas consequências, é possível passar à abordagem da causa da criação do todo (29d).
Porque o demiurgo era bom, quis que toda a geração se lhe assemelhasse e fosse boa, excluindo, na medida do possível[7], a deficiência. Para isso, trouxe à ordem o visível (horaton), da agitação desordenada em que se achava, por aquela lhe parecer melhor (30a). Tendo ainda reflectido que, no visível, o melhor é a Inteligência, a qual só pode surgir na alma, construiu a Inteligência na alma e esta no corpo[8]. Eis a conclusão plausível do proémio da narrativa (30b-c).
2.1 O problema da origem da vida
A composição surpreende pela heterogeneidade dos elementos que a constituem. Começando pela oposição onto-epistemológica do ser/razão, ao devir/opinião/sensação (27d-28a), passa ao esboço de um argumento sincrético[9] (27d-29b), que remata com um postulado teológico-ético (29d-e), rico de consequências físicas e cosmológicas, tudo isto num discurso colorido por um forte matiz religioso.
Mas devemos ficar atentos à diferença de contextos culturais. Alheio à disciplina definida por uma religião revelada, o filósofo tenta argumentar, em terrenos em que a argumentação não proporciona segurança[10]. A narrativa das origens do cosmo integra noções como as de um “criador bom”, “isento de erro”, de uma “obra bela”, de “alma”, num raciocínio que explica como a inteligência traz o “todo visível”..., “que se movia discordante e desordenadamente”, da “desordem” para “ordem” (30a; vide 53a-b), para um leitor actual, situadas no domínio da religião.
A intromissão da argumentação na descrição da ordem transcendente provoca, porém, uma cadeia de problemas. Não se percebe como podia “existir” algo, antes de o cosmo ser criado, consequentemente, em que teria consistido a criação. É certo que ambas as perguntas são indirectamente respondidas pela declaração de a criação começar pela da alma do cosmo (34b-c). Mas então, que poderá o Criador ser, senão outra alma? E, se é, por quem e como foi criado? Como então, antes dele, já havia o visível?
Os problemas, motivados pela estreita associação da criação à existência – normal para um leitor actual –, regridem no infinito, sem que a cadeia de absurdos possa ser detida[11]. Para a evitarmos haverá que esclarecer previamente o sentido a atribuir aos termos envolvidos: “criação”, “visível”, “ordem”, “movimento desordenado” e, sobretudo, “alma”.
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