Trabalho da Fenomenologia
Por: Samuel Viana • 18/12/2023 • Artigo • 21.192 Palavras (85 Páginas) • 69 Visualizações
Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 74
11 de setembro de 2010
[pic 1]
Boa noite a todos e sejam bem-vindos.
Vocês devem ter encontrado um documento no site intitulado “Influências intelectuais que eu recebi até a década de 90”. Eu o disponibilizei com o propósito de tentar ilustrar uma certa técnica da absorção de influências culturais. É uma técnica que foi se desenvolvendo naturalmente e que eu considero extremamente importante para poder reconstruir a história dos pensamentos, a história da origem da formação das várias ideias a partir desse complexo de influências recebidas, fundindo-se por sua vez com a experiência existencial, servindo também depois de modelo para a compreensão da própria história das ideias, por assim dizer, e da história cultural do meio em que nós estamos. Toda a história que nós escrevemos, toda a nossa apreensão do movimento histórico baseia-se em última análise nos modelos que nós temos dentro de nós com relação ao nosso próprio desenvolvimento, ao nosso próprio senso de temporalidade, nosso próprio senso da formação da nossa consciência.
É evidente que esta lista não abrange tudo. E eu também não posso garantir a exatidão da ordem cronológica de tudo o que eu coloquei. Mas o primeiro elemento cultural recebido na minha vida foi a Liturgia da Igreja Católica, que eu decorei por volta dos 9 anos de idade (na época a missa era em latim) para ser coroinha, um ajudante de missa. Aquilo ficou para mim como uma espécie de modelo de tudo o que veio depois, e eram mais ou menos ali que as coisas encaixavam-se, de modo que a primeira visão que eu tive era de estar na missa, ou seja a visão da criação, do pecado original, do nascimento, vida, paixão, morte e ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo e do juízo final.
Na igreja onde eu fui educado, havia vários painéis pintados por um grande pintor brasileiro, Fúlvio Pennacchi, com imagens do céu, do inferno, do juízo final e de várias vidas de santos. E aquelas imagens impregnaram-se profundamente na minha imaginação. Eu posso dizer que tudo o que veio depois veio como se estivesse completando e dando uma concreção àquelas primeiras imagens absorvidas, tanto do texto da missa quanto das imagens que eu via ali pintadas e do ensino que eu recebi dos padres entre os 8 e 10 ou 11 anos. A minha experiência na escola católica foi muito boa, não teve nada desses episódios escabrosos que as pessoas sempre costumam narrar. O Bruno Tolentino particularmente narrava que tinha sido abusado por um padre católico. Eu nunca vi nada disso, os padres sempre trataram-me muito bem. E havia também espetáculos de teatro periódicos com cenas bíblicas, e eu me recordo delas até hoje. Eu posso dizer que a primeira influência cultural recebida foi esta.
A segunda ocorreu quando eu fiz um grupo de amigos de uma família muito ligada à música, e que fazia audições semanais na casa deles. E eles tinham um tio que tinha muita paciência conosco e explicava-nos tudo. Eram longas audições comentadas. E ali eu recebi um mar de influências. Nessa época caiu-me nas mãos uma descrição da 5ª Sinfonia de Beethoven, explicando tema por tema, os encadeamentos entre eles, a montagem da peça. Dava, em suma, a ideia da estrutura matemática da 5ª Sinfonia de Beethoven. A partir dali foi fácil captar os mesmos elementos em inumeráveis outras músicas, de maneira que, sem ter nenhum talento musical especial — eu me lembro que as pessoas tentaram me ensinar piano durante sete anos, com resultados os mais decepcionantes possíveis —, eu, no entanto, era um bom ouvinte de música e compreendia razoavelmente bem a estrutura das músicas.
Muito tempo depois, conversando com um maestro, eu descrevi a estrutura – não me lembro bem de que composição era, acho que era alguma coisa de Bach – e ele olhou para mim perguntando se eu tinha estudado teoria musical. Eu respondi que nunca, mas que eu simplesmente tinha aprendido a ouvir. Ensinaram-me a ouvir os encadeamentos e como a peça estava montada. Então esta ideia da estrutura matemática oculta ficou bastante clara já naquele tempo por meio desta prática.
Eu não vou recompor a história inteira, depois vocês podem verificar. Mas a ideia era o seguinte: à medida que eu ia absorvendo essas influências, naturalmente podia ver com muita facilidade o contraste entre diferentes perspectivas, mesmo porque logo depois, eu me envolvi com o marxismo e durante anos convivi com o pessoal ligado à militância. E logo em seguida eu me envolvi no ambiente teatral, estudando teatro com Eugênio Kusnet; depois estudei cinema. Durante um tempo andei muito na órbita da psicanálise, não somente lendo os autores, mas submetendo-me a várias psicanálises (eu creio que fiz oito). Em cada uma dessas ocasiões em que eu absorvi influências, eu não me limitei simplesmente à leitura, eu procurei, na máxima medida do possível, conviver com as pessoas que tivessem ligadas àquilo e respirar, por assim dizer, a atmosfera daquela área cultural. Evidentemente as áreas das mais heterogêneas e conflitantes.
À medida que eu fazia isso, eu notava que eu jamais poderia receber profundamente e compreender qualquer uma dessas influências se eu me limitasse a apreensão puramente mental daquilo. Era preciso que a coisa se aprofundasse e atingisse, por assim dizer, a minha imaginação e os meus sentimentos. Então eu tentava absorver de tal modo que eu visse o mundo como aquelas pessoas viam. E como essas influências eram bastante contraditórias e heterogêneas, então o único modo que eu consegui inventar para me adaptar a isso foi justamente a técnica teatral do Stanislavski. Já contei a vocês que eu estudei um tempo com o Eugênio Kusnet, sem a menor pretensão de me tornar um ator, mas simplesmente pela importância psicológica do estudo.
A técnica do Stanislavski era a de uma identificação profunda do ator com o personagem, de modo que quaisquer que fossem os fatos relatados, as situações apresentadas na peça, devia-se procurar na sua memória afetiva situações análogas — não idênticas evidentemente, mas análogas. É a ideia de que uma emoção vivenciada por mim pessoalmente pudesse ter uma analogia com outra emoção completamente diferente vivenciada por um outro sujeito, mas que tivesse a mesma estrutura, a mesma ordem interna, e que isso podia ter, no momento da representação, o mesmo efeito cênico, por assim dizer. Quer dizer, ia-se produzir as mesmas expressões, os mesmos gestos, as mesmas entonações de voz que o personagem tinha expressado usando os meios próprios do ator, mas com o nome do personagem. Quer dizer, tinha-se do personagem somente o nome, o material verdadeiro era buscado no próprio ator. Então isso permitia uma identificação profunda com as pessoas que, ou fossem muito diferentes do ator, ou que tivessem vivido experiências que em si mesmas eram absolutamente inacessíveis ao ator. [00:10]
...