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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Por:   •  6/8/2019  •  Artigo  •  2.362 Palavras (10 Páginas)  •  322 Visualizações

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de História

História, memória e identidades

“Parece que a gente é um ET aqui dentro, e não é assim”: Ingresso e permanência de uma mulher negra cotista na UFRGS.

Léo Francisco Siqueira de Moraes

Orientação: prof. Dra. Carla Simone Rodeghero

26/11/2018

Porto Alegre – RS

Este trabalho consiste na análise da entrevista de Mirela Barcellos Mendes, 23 anos, mulher, negra, estudante do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e cotista da modalidade de candidata egressa do Sistema Público de Ensino Médio, com renda familiar bruta mensal igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo nacional per capita autodeclarada preta, parda ou indígena. A entrevista foi realizada no Campus do Vale da UFRGS em 31/10/2018.

        A experiência foi possibilitada pela participação na disciplina eletiva História, Memória e Identidades, ministrada pela professora Carla Simone Rodeghero, em que foram trabalhadas as bases teóricas e metodológicas da pesquisa em história oral. A atividade prática da entrevista buscou instrumentalizar os estudantes da disciplina para o trabalho com a metodologia, servindo ainda a uma pesquisa maior em andamento, sobre ingresso e permanência de estudantes cotistas na UFRGS.  O presente trabalho busca analisar de forma sucinta a entrevista produzida, confrontando a discurso da fonte com o embasamento teórico da metodologia de história oral, assim como a bibliografia pertinente ao tema da pesquisa em questão.

        Mirela se autodeclara orgulhosamente mulher e negra. Nascida e criada numa periferia de Porto Alegre com o pai ausente, foi criada pela mãe técnica em contabilidade e pela avó professora. Estudou a vida inteira em escola pública e recorda-se conviver com o preconceito direto e velado desde a infância. Na segunda metade do Ensino Fundamental até o Médio teve a oportunidade em estudar no Centro Estadual de Formação de Professores General Flores da Cunha, escola central em que entrou em contato com o movimento estudantil e se politizou. Daí a decisão de se formar professora de História e o incentivo dos professores para cursar a UFRGS, ainda que fosse uma realidade diferente do padrão da sua base social.

        A entrevistada relata que do seu nicho familiar não tinha a visão da UFRGS como uma perspectiva de futuro possível, entrando em contato com a ideia de uma universidade pública como um espaço a ser ocupado por ela na escola. Ao criar laços com professores e colegas politizados na educação básica, ampliou seus horizontes a respeito do seu futuro profissional e papel social, criando inclusive atritos com a equipe diretiva da escola ao se posicionar como representante do grêmio estudantil:

eu era considerada uma má aluna. Sempre fui considerada uma má aluna por diversas questões, e eu tive professores que fizeram com que eu me interessasse pelo conteúdo duma maneira diferente, e aí eu sempre brinco com uma professora minha até hoje, a  Laura, que “maus”... que “bons professores tornam maus alunos bons alunos”. E eles me deram… E eu sei que eu posso mudar a vida de alunos da periferia, levar um ensino de qualidade pra eles (MENDES, 2018. p. 5)

O relato reflete o conservadorismo que ainda domina a mentalidade dos professores mais antigos, um reflexo do senso comum elitista e excludente da sociedade. A sua iniciativa de se posicionar no movimento estudantil como uma aluna questionadora incomodava professores ligados à direção da escola, que repreendiam seu comportamento com um discurso de que a militância poderia comprometer sua concentração nos estudos. Alguns professores, no entanto, enxergavam neste perfil um potencial libertador, questionando a trajetória tecnocrática estabelecida e incentivando-a a seguir os estudos em direção ao ensino superior.

        A família também questionava a decisão de estudar na UFRGS, deixando sempre claro que seria mais coerente pagar para estudar em uma faculdade privada, que é a realidade mais comum do jovem de periferia que deseja ingressar no ensino superior:

Meu pai não entende até hoje. Meu pai é contra eu estar fazendo História na UFRGS, ele acha que eu deveria ter feito uma paga de noite pra mim poder trabalhar durante o dia. A minha mãe hoje ela acredita e acha que a minha luta foi muito… muito bonita, ela disse, que ela não teria esse gás que eu tive pra entrar aqui dentro. (MENDES, 2018. p. 6)

A necessidade econômica obrigou Mirela a dividir sua rotina em tripla jornada durante o Ensino Médio: cursinho pré-vestibular, trabalho e escola. Ao concluir o Ensino Médio pela modalidade EJA, percebeu que trabalhando não conseguiria se concentrar de forma satisfatória nos estudos para o vestibular, o que a levou a desistir do trabalho para dedicar-se integralmente aos estudos, valendo-se temporariamente do benefício do seguro-desemprego. A mãe e a madrinha tiveram papel decisivo na questão econômica, pois assumiram financeiramente a estudante no período que se dedicava à preparação para o vestibular, fenômeno apontado pela professora Arabela Campos Oliven:

As famílias fazem arranjos internos para tornar possível a realização do sonho de concluir um curso universitário, como o caso de Taís Leite, primeira engenheira cartográfica negra a se formar na UFRGS. Casada, fez um acordo com o marido – ele manteria a casa para ela concluir os estudos, depois ocorreria o contrário. (OLIVEN, 2017. p. 363.)

A família, ainda que questionando a escolha e sabendo que seria um desafio, apoiou a entrevistada na decisão de estudar para o vestibular e estudar na UFRGS, reorganizando o planejamento financeiro da família a fim de se fazer um sacrifício temporário em prol de um benefício maior a longo prazo. Há que se observar, todavia, a resistência da família, retaliação de professores e a falta de incentivo e representação da narradora em sua infância e contexto próximo. A escola foi decisiva no processo de inspiração de Mirela para escolher ser professora e ingressar na UFRGS, colocando-a em contato com novos conhecimentos, experiências e visões de mundo que não as que estava habituada.

        Este relato exemplifica na trajetória pessoal da entrevistada a exclusão social que os pobres experimentam, sobretudo os negros, sendo isolados em uma rede de representações que os incentivam a atingir os espaços considerados de menor prestígio social. É deixado claro para o negro periférico, de forma estrutural, que seu lugar não é na universidade. Romper com este paradigma causa estranhamento na burguesia branca, que tende a rejeitar a presença de negros e indígenas nos “templos brancos”, como defendido por Oliven, historicamente impedidos de acessar esses espaços. O exame vestibular é o guardião da entrada desses templos, garantindo a acesso somente àqueles que possuem um capital cultural privilegiado:

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