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Convivência e tensão entre cristãos-velhos e cristãos-novos nas crônicas quinhentistas do “Massacre de Lisboa de 1506

Por:   •  24/4/2019  •  Artigo  •  5.565 Palavras (23 Páginas)  •  204 Visualizações

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Cem dias de absolvição no mundo que há-de-vir[1]: Convivência e tensão entre cristãos-velhos e cristãos-novos nas crônicas quinhentistas do “Massacre de Lisboa de 1506”[2]

Rodrigo Fernandes Antunes Vieira[3]

Introdução

        O evento posteriormente denominado por grande parte da historiografia portuguesa como “Massacre de Lisboa de 1506[4]” foi um levante popular de cristãos-velhos, marinheiros estrangeiros e frades da ordem dominicana contra a população cristã-nova de Lisboa, ocorrido durante a Semana Santa daquele ano. A matança teve início durante uma missa no Domingo de Páscoa, após um cristão-novo negar um suposto milagre que ocorreu na capela do Mosteiro de São Domingos. Seu assassinato, ainda dentro da capela, foi o estopim de uma série de violências praticadas majoritariamente contra a população cristã-nova. Dois frades dominicanos incitaram os ataques contra população cristã-nova pregando que cada morte da “semente de Israel” concederia a seu executor “cem dias de absolvição no mundo que há-de-vir”[5]. O número de mortes estipulados nas fontes supera os milhares.

O presente trabalho tem como objetivo analisar crônicas produzidas no século XVI que abordaram o Massacre de Lisboa, tendo como intento geral compreender como o evento foi representado nesses escritos. Buscaremos também verificar de que maneira os cronistas escreveram sobre dois eventos precedentes ao Massacre que consideramos significativos para a elaboração das ideias de convivência e tensão entre as populações cristã-velha e cristã-nova: a conversão forçada da comunidade judaica a partir de 4 de dezembro de 1496[6] e o fim da segregação da minoria religiosa em bairros próprios, as judiarias.

A principal fonte que norteou a produção historiográfica acerca do Massacre de Lisboa foi a Chronica do felicíssimo rei dom Emanuel[7] escrita pelo cristão-velho português Damião de Góis, publicada originalmente em 1567. Para a presente pesquisa, no entanto, decidimos alargar as fontes selecionadas em duas direções: para além da “Chronica do felicíssimo rei...”, os trabalhos dos cristãos-velhos portugueses Gaspar Correa[8] e Jerónimo Osório[9], incluiremos duas crônicas escritas por cristãos-novos que viviam em comunidades portuguesas – Shebet Yehudah e Consolação as Tribulações de Israel - e crônicas de autores castelhanos[10] que, mesmo tratando primordialmente da história de Castela e seus soberanos, relataram o Massacre de 1506 ocorrido no Reino vizinho.

Se a partir da conversão forçada a Coroa portuguesa buscou construir uma convivência entre as antigas comunidades judaicas e as populações cristãs, alcançando certo êxito principalmente com a consumação dos casamentos mistos e a eleição de cristãos-novos para cargos prestigiosos na política local[11], por outro lado, grupos de cristãos-velhos, sendo estes principalmente membros da corte e estratos superiores da hierarquia eclesiástica, consideraram que os cristãos-novos mantiveram práticas de sua religião antiga após a conversão e o contato direto entre as duas populações poderia significar a corrupção da ortodoxia cristã. Nesse contexto, não é possível desassociar a questão religiosa mencionada acima das relações sociais desempenhadas entre as duas populações cristãs. Os judeus que viviam no Reino de Portugal eram representados como uma população abastada, privilegiada por exercer cargos ligados à economia do Reino e, após a conversão, a representação dos recém-conversos não sofreu alterações drásticas nesse quesito[12]. Para além da continuidade da representação, a proteção régia exercida nas primeiras décadas do reinado de D. Manuel I fortalecia a imagem desses como grupo segregado, mesmo integrando a cristandade local. A tensão social entre as duas populações cristãs - uma de origem, outra convertida à força -  na disputa por cargos e proximidade com a coroa foi alimentada por parte dos cristãos-velhos, como uma luta pela pureza da fé cristã no Reino, já que os antigos judeus deixavam de habitar os bairros segregados e passaram a viver no centro do mundo cristão lisboeta, estabelecendo residência e comércios nas praças principais da capital do Reino lusitano[13]. 

Nesse sentido, buscaremos analisar como os cronistas selecionados narraram o evento do Massacre, tomando este acontecimento como indício das transformações observadas na convivência e nas tensões acumuladas entre as duas comunidades no mundo pré-Inquisitorial português. 

A Historiografia dos Levantes Religiosos

        Conforme o historiador Federico Palomo em um de seus livros[14], a história eclesiástica e religiosa do mundo ibérico ainda carece de importantes lacunas acerca de temáticas como a ação da Igreja e de grupos a essa. A década de 1970 foi um período crucial para o ganho de protagonismo dos estudos sobre a Inquisição, a partir da análise documental produzida pelos Tribunais ao longo de seus séculos de atuação. No entanto, Palomo também percebe que a preferência pelo estudo sobre as vítimas da Inquisição colocou temas correlatos da história eclesiástica e religiosa em segundo plano[15].

        A existência de silêncios historiográficos em torno de temáticas que envolvem a história das populações judaicas em Portugal foi objeto de análise do historiador Paulo Mendes Pinto em um de seus artigos[16]. O autor defende que a historiografia portuguesa criou locais de memória específicos para as populações de origem judaica. Os judeus e os futuros cristãos-novos são comumente representados sob as roupagens de membros da elite econômica ou da elite científica do Reino de Portugal. Dessa maneira, os historiadores acabam por ignorar toda uma gama de atividades exercidas por essas populações, muitas vezes nem tão prestigiosas quanto as ligadas à coroa. Ao analisar a relação dos cristãos-novos com as estruturas religiosas do Reino, o historiador percebe que essa é uma temática que ganha evidência com o início das narrativas acerca da Inquisição Portuguesa[17].

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