Livro: O Guarani
Casos: Livro: O Guarani. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: Felipe88 • 18/8/2013 • 10.125 Palavras (41 Páginas) • 505 Visualizações
PRIMEIRA PARTE
OS AVENTUREIROS
I CENÁRIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e
engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.
É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois
se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro
contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza
selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os
barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.
Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é
livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade.
Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir,
espumando, deixando o pêlo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o
estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua
um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre
sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia
que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de
trepadeiras e flores agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se
estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos
capitéis formados pelos leques das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os
dramas majestosos dos elementos, em que o homem e apenas um simples comparsa.
No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a
cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não
tivera tempo de penetrar o interior.
Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma
eminência, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semi-círculo irregular que
teria quando muito cinqüenta braças quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada
de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte.
Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de
madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha.
Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado
pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.
Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de
segurança e defesa.
De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando gradualmente,
iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de
espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável.
A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda apresentam as nossas
primitivas habitações; tinha cinco janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas.
Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma
estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até à borda da esplanada
uma asa do edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.
No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que chamaremos jardim, e
de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista
abraçava do alto do rochedo.
Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores copadas, um estendal de relvas, um fio de
água, fingindo um rio e formando uma pequena cascata, tudo isto a mão do homem tinha
criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável.
À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se precipitava um
arroio da largura de um copo de água, e o monte de grama, que tinha quando muito o tamanho
de um divã, parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma
miniatura.
O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por
dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados.
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé,
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