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Análise do Conto O Jantar, de Clarice Lispector

Por:   •  13/7/2024  •  Trabalho acadêmico  •  2.299 Palavras (10 Páginas)  •  134 Visualizações

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O NARRADOR “EU” COMO TESTEMUNHA E ANÁLISE DO CONTO “O JANTAR” DE CLARICE LISPECTOR

O presente trabalho visa analisar o conto ‘O Jantar’, de Clarice Lispector. Analisar uma obra literária, contudo, não é tarefa fácil, pois reclama a elucidação tanto do recorte teórico e seleção de categorias realizadas quanto do caminho que foi trilhado até as conclusões (SILVA, 2011). Nesse sentido, cumpre destacar que esse trabalho se insere teoricamente no debate, muito antigo na tradição ocidental, sobre a relação entre o modo de narrar, a representação da realidade e os efeitos exercidos sobre os ouvintes e/ou leitores (LEITE, 1997, p. 6). Assim, a fim de possibilitar a análise do texto, pressupõe-se que o conto “O Jantar” é dotado de uma unidade artística construída a partir de elementos que se relacionam entre si, isto é, presume-se que a seleção de tema, enredo, personagens, espaço, tempo, bem como de narrador e de foco narrativo, é intencional, fruto do trabalho artístico da autora, de modo que a análise das formas pelas quais esses elementos se articulam constitui a principal fonte de interpretação do texto.

Desse modo, o conto será divido em seus elementos, dando especial atenção ao narrador e foco narrativo, conceitos centrais na construção da história. Para isso, serão utilizadas as categorias do foco narrativo propostas por Norman Friedman (2012), em especial, o ‘“Eu” como testemunha’.

CARACTERÍSTICAS DO NARRADOR “EU” COMO TESTEMUNHA

O tipo de narrador “eu” como testemunha apresenta, necessariamente, a história em primeira pessoa. Esse narrador não possui uma mediação de uma voz exterior, constituindo-se a única voz dentro do texto. Como a própria denominação sugere, a história é baseada totalmente nas observações dessa testemunha. Nelas, ele pode expressar suas visões, opiniões, hipóteses e impressões, que sempre serão limitadas pela inacessibilidade ao pensamento de quem é observado, dado que esse tipo de narrador não possui onisciência. Contudo, ele pode narrar o que uma personagem disse ou fez, mas isso baseado apenas em testemunhos e observações indiretas (FRIEDMANN, 2002; LEITE, 1997).

O narrador “eu” como testemunha ocupa um papel secundário na narração, podendo excepcionalmente ocupar o papel de protagonista, como exemplifica Ligia Chiapini Leite (1997), em sua obra “O Foco Narrativo”. A autora demonstra que em “Memorial de Aires”, de Machado de Assis, há ocorrência de dois tipos de narradores em um mesmo personagem, o Conselheiro Aires. Ele é narrador testemunha do romance entre Tristão e Fidélia enquanto é protagonista ao relatar suas memórias.

Esse tipo de narrador pode narrar de forma próxima, distante ou ambas, a depender da forma de apresentação eleita pelo autor (sumário ou cena), de modo a alternativamente aproximar ou afastar o leitor da história. Na opção próxima, o narrador apresenta a história, literalmente, de forma próxima ao que está sendo observado, mostrando mais detalhes ao leitor. É o caso conto “O Jantar”, de Clarise Lispector (1961). Na opção distante, o narrador apresenta a história de maneira afastada do que está sendo observado, contando vários eventos que podem abranger um certo período de tempo e espaços diferentes. Há também a possibilidade de o narrador optar por apresentar os fatos de forma próxima e distante alternadamente, como em “Um Estudo em Vermelho”, de Conan Doyle (1998), em que se emprega a apresentação de cenas pontuada, para fins de efeito narrativo, e de relatos sumarizantes.

CLARICE LISPECTOR E ANÁLISE DO CONTO “O JANTAR”

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1925 e veio para o Brasil ainda criança. Ela foi jornalista e escritora – contista, cronista e romancista. Morreu no Rio de Janeiro em 1977. As características principais de sua prosa são: ser intimista e introspectiva; a valorização da expressividade; a exploração da condição humana, o caráter do ser humano e os conflitos interiores; a importância do inconsciente, dos sentimentos e das sensações e do uso do fluxo de consciência.

 O conto “O Jantar” foi publicado, inicialmente, no jornal “A Manhã” em 1946 e, posteriormente, no livro “Alguns Contos” em 1952 e em 1960, incorporado à obra “Laços de Família”. Em “Laços de Família”, oito dos treze contos retratavam a condição feminina na família. “O Jantar” é um dos que o protagonista é um homem, assim como, seu narrador, além de ser o único do livro a ser narrado em primeira pessoa.

O assunto do conto é um jantar, que tem como enredo um personagem, o eu-testemunha, observando a refeição completa de um velho senhor. Conforme observa essa ação, sente uma náusea e repulsa crescentes. O trecho a seguir exemplifica essa observação inicial:

“Ele entrou tarde no restaurante. [...] apalpava o bife com as costas do garfo, quase cheirava, mexendo a boca de antemão. E começava a cortá-lo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo. Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e, como se tivesse que apanhá-lo em voo, abocanhou-o num arrebatamento de cabeça. Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta [...]” (LISPECTOR, 1961, p. 91)

Quanto ao tema da narrativa, encontram-se estudos defendendo diversas interpretações (NAMORATO, 2012; ORMUNDO, 2008), mas o que defenderemos a seguir é que o tema do conto é o primitivismo e a fragilidade do homem diante do tempo, em específico, a civilidade como uma frágil aparência diante da passagem do tempo e da morte.

Sobre às personagens, nenhuma recebe nome, apenas uma caracterização do ser humano em geral. São quatro no total:

  • Velho – caracterizado como grotesco e monstruoso: mastiga “com vigor e mecanismo”, abocanha a carne como um selvagem de “mãos cabeludas”, devora o alimento em “violência potência” tomado pelo “êxtase arfante”, o “grande cavalo”, o “velho comedor de crianças”.
  • Narrador testemunha – fascinado, atraído, no entanto com náusea e repulsa.
  • Mulher – magra e bela, em contraposição ao velho.
  • Garçom – cortês.

Espacialmente, a história se desenrola no restaurante. Temporalmente, há predominância do tempo psicológico na obra – fixado no agora da cena –, revelando os sentimentos dos personagens, não obstante se perceba a existência de um tempo cronológico. O tempo verbal que predomina é o pretérito perfeito e imperfeito, mas há também o mais-que-perfeito (“Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios”) e o presente, assegurando que o narrador e o velho partilham o mesmo instante).

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