Bloch: Personagem de No caminho de Swann
Por: Pamela Puglieri • 21/5/2018 • Ensaio • 5.108 Palavras (21 Páginas) • 181 Visualizações
1.Introdução
Bloch, personagem de No caminho de Swann, ao visitar o pequeno Marcel e seus pais em Combray, chega todo molhado, sujo de lama e atrasado. Sem sequer se justificar, ele somente afirma que ignora o bom grado “desses instrumentos mais perniciosos, e além disso rasamente burgueses, o relógio de pulso e o guarda chuva”[1]. Settembrini, o pedagogo humanista de A montanha mágica, também associa, mais diretamente que Bloch, o tempo à burguesia ao afirmar que “É preciso que administremos economicamente o nosso tempo e o nosso espaço, que tiremos proveito deles (...)”, se referindo aos europeus, e que deve-se tomar como símbolo do progresso, do proveito do tempo, as “grandes cidades, esses centros, esses focos de civilação, esses cadinhos de pensamento”[2], referindo-se agora às cidades europeias.
Essas relações presentes nas duas obras são um sinal claro de que a importância do tempo foi crescendo conforme se desenvolvia a burguesia. A importância do indivíduo também cresceu no mesmo sentido. Não é diferente com o romance: ele surge no contexto de ascensão da burguesia e do tempo.
A representação do tempo no romance também apresentou mudanças com a popularização do gênero. Grandes romancistas, tais quais Balzac e Zola, por exemplo, eram adeptos de uma representação mais cronológica do tempo na narrativa, com poucos flashbacks ou anacronias. Esse modelo, no entanto, desaparece nos romances mencionados, de Marcel Proust e Thomas Mann. Estes se apegam não na ordem temporal dos acontecimentos, mas sim na percepção temporal deles por parte dos personagens. O Eu, através dos seu sentidos, acaba distorcendo a cronologia.
2.O tempo interior
Esse tempo distorcido pela visão do Eu pode ser chamado de tempo interior. Tal noção é essencial na leitura de No Caminho de Swann e de A Montanha Mágica, obras nas quais a percepção da passagem temporal pelo Eu é tem importância maior do que a passagem física do tempo, sentida pelo ser humano através da mediação da percepção espacial. Rejeitando uma medida cronológica, ligada ao movimento dos astros ou dos ponteiros do relógio, a percepção individual e interior do tempo relativiza os segundos, minutos, horas, dias etc, tornando-os sujeitos à duração que um personagem percebe de um acontecimento. Hans Castorp, logo no início de sua estadia no Berghof, começa a refletir sobre essa propriedade do tempo de não ser sentido de um modo único. Em uma passagem de A Montanha Mágica, ele o compara à uma irmã muda, termômetro desprovido de escala, usado por pacientes que queriam fraudar seu período de estadia no sanatório de tuberculosos.
“(...) e por sorte lhe ocorreu uma excelente ideia a respeito da natureza do tempo: evidenciou-se que o tempo nada mais era do que uma ‘irmã muda’, uma coluna de mercúrio totalmente desprovida de escala, para aqueles que quisessem trapacear.”[3]
Na terceira parte de No Caminho de Swann, Nomes de lugares, o Nome, há também uma passagem que exemplifica essa questão relativa ao caráter pessoal do tempo:
“E, além disso, mesmo do ponto de vista da mera quantidade, nas nossas vidas os dias não são todos iguais. Para que se atinja o fim do dia, temperamentos levemente nervosos, como outrora fora o meu, fazem uso, como automóveis, de diferentes velocidades. Há dias montanhosos, desconfortáveis, que parecem demorar um tempo infinito para se transpor; e dias de declive, em que se pode escorregar com toda a velocidade, cantando pelo caminho.” [4]
Esses fragmentos das obras em questão atestam que a mesma quantidade de tempo físico, cinco minutos, por exemplo, pode ser demoradamente sentida ou parecer passar tão rapidamente que se torna insignificante. A esse processo se dá o nome de tempo da durée, ou duração. É importante destacar que romances como A Montanha Mágica e No Caminho de Swann, célebres na sua articulação do tempo interior, não somente exploram as possibilidades narrativas do tempo da duração, mas também tematizam filosoficamente o tempo.
2. O tempo interior transposto para a narrativa
Nos romances que tematizam o tempo, como é o caso de A Montanha Mágica e No Caminho de Swann, os autores constantemente evidenciam o contraste entre a duração interior do tempo e a objetividade do tempo cronológico. Por isso, nessas obras, é muitas vezes difícil separar os momentos em que predomina a reflexão sobre a realidade temporal, de teor filosófico, daqueles em que se descreve a passagem do tempo propriamente dita, integrada à narrativa.
A própria estrutura do romance e a passagem do tempo dentre dele - a possibilidade do retrato de dias, meses, anos em uma linha e poucos segundos em uma página - é análoga ao tempo da duração a que se referem Marcel e Castorp nas passagens sobre a relativização do tempo citadas na seção anterior. Ao processo de extensão do tempo narrado, chama-se alongamento e o de encurtamento do mesmo, sumário. No capítulo VII de A Montanha Mágica, há a seguinte passagem:
“Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola. Uma história que rezasse: “O tempo decorria, escoava-se, seguia o seu curso” e assim por diante - nenhum homem de espírito são poderia considerá-la história. (...) O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado à ela, como aos corpos no espaço.”[5]
Nessa passagem, o autor se refere ao tempo narrativo. Ele chega à conclusão de que o tempo propriamente dito, cronológico, não pode ser contado, ou então uma obra consistiria em somente uma sequência linguística de advérbios de tempo. A razão para isso seria o fato de que, quando se narra, cria-se no leitor a impressão da passagem do tempo através dos acontecimentos e suas relações, com algumas exceções em que as expressões temporais - quando, naquele momento, ontem etc, são usadas. Portanto, ao narrar, apresenta-se aquilo que preenche o tempo e não o tempo em si. Isso pode ser visto no seguinte fragmento:
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