O Conto Uma Chance Para Smley
Por: Thiago Hanney • 13/11/2023 • Ensaio • 1.699 Palavras (7 Páginas) • 46 Visualizações
PROJETO-PORFÓLIO
TÍTULO PROVISÓRIO: Nave interior
Premissa: Um professor em crise existencial escreve cartas para fazer as pazes com sua criança interior
Sinopse: Um professor é acusado de "ideologia de gênero". Após o afastamento da escola, ele resgata o hábito de escrever cartas para Xuxa, através de uma sessão de terapia. Durante sua jornada de autoconhecimento, ele reflete sobre como conservadorismo afetou a sua vida.
Conflito aparente: Pausa no trabalho para cuidar da saúde mental, mediante a sua dificuldade para continuar o combate ao preconceito em sala de aula.
Conflito essencial: Relação problemática com sua autoestima, por conta dos traumas que constituem sua jornada.
Esboço de cena: Quatro letras. Logo assim que aprendi a escrever com mainha, a primeira palavra que escrevi sozinho foi o seu nome. Resgatei essa memória ontem durante uma sessão de terapia. No fim da noite, revirei o Google para encontrar versos de músicas que podem traduzir o turbilhão de sentimentos. Bati o olho em um trecho de Trem fantasma. "Despenquei no abismo sem parar, então pensei que morri". A sensação descrita revela o que sinto no instante em que a ansiedade se transforma em um ataque de pânico. Uma pergunta me fez companhia no escuro do quarto: Quem eu poderia ter sido se eu tivesse sido protegido pela nave da Xuxa?
UMA CHANCE PARA SMILEY
“Qual é seu destino?” Perguntou o motorista, antes de colocar uma caixa com copos personalizados dentro do bagageiro do ônibus. Pombal, terra em que vivi minha infância inteira. Sete horas entre duas rodoviárias, para poder comemorar o aniversário de 80 anos da minha avó. Tempo de viagem suficiente para dar uma nova chance para a série Smiley. Confesso que a história não me empolgou na época do lançamento, mas no domingo passado uma amiga me marcou em uma publicação no instagram. "A Netflix cancelou a segunda temporada, mas pelo menos a história de Alex e Bruno tem um final feliz.”
Com os pés firmes no sertão, percorri o caminho até a casa em que cresci. Não precisei nem apertar a campainha, pois Chicó já latiu. Bença, mainha? “Deus te abençoe.” Contei as poucas novidades, almocei e tirei um cochilo. Acordei, reli o texto que escrevi para Dona Jussara. Acrescentei uma frase sobre a época em que ela transformou o seu lar em uma sala de reforço para crianças do bairro.
Assim que cheguei na festa, minha sobrinha correu e pulou em meus braços. No gramado, dois meninos corriam juntos. “Pedro, venha falar com seu tio.” A sua camisa do Flamengo me fez abrir a bagagem de memórias da quarta série. Nunca consegui entender a graça de correr atrás de uma bola. Vivi ritos de passagens durante as aulas de educação física: já fui o último escolhido para fazer parte do time, depois fui o gandula e finalmente fui o menino que se escondia na biblioteca. Mas a minha solidão encontrou companhia. Um novo colega entrou na minha turma. Marcos. Ele era diferente dos demais. A hora da chamada tinha Arthur, Bruno e Felipe. Mas o final do nome com a letra s, apenas o meu nome Lucas e o seu nome Marcos. Nossos nomes juntos na caderneta seria um sinal. Eu não estava só. Para além dos muros da escola, haveria outros meninos como eu.
Marcos dividia lanche comigo na hora do recreio. Juntos criamos rotas de fuga do jogo sem sentido. Certa vez, gazeamos aula e passamos em um mercadinho. Compramos pippos, trakinas e duas pitchulas. Seu Ailton anotou tudo no seu caderno. Entre todos os netos, eu era o único que tinha o privilégio de poder comprar coisas na conta da minha avó. Passamos na locadora para ver se já tinha chegado a fita de Titanic. Depois da biblioteca, a locadora se tornou nosso labirinto favorito. Enquanto lia a sinopse de MIB, ouvi uma voz de rotweiller. "Amigão, onde é a sessão de filme pornô?" Marcos me puxou rapidamente e juntos nos trancamos no primeiro refúgio que encontramos.
Rindo de nervoso. Toda vez que escuto essa expressão lembro desse dia. O escuro do banheiro foi testemunha da represa feita para não transbordar o rio da minha boca. Pornô? Que sessão seria essa que o seu Vicente procurava? Segurei minha boca e senti uma gota de suor percorrer minha nuca. A cicatriz acima da sobrancelha de Marcos era uma evidência concreta do seu medo.
O pai do Marcos foi embora da locadora e nós conseguimos escapar. Mas nossas mães foram chamadas na escola. A sala da diretora de repente parecia uma delegacia de 007. Duas cabeças em posição de abajur. Como pode um dia divertido na vida de uma criança ser julgado como um crime? Sem direito à defesa, fomos condenados à vida singular. Feito dois presos perigosos. Cada um em sua cela. "Separados em turmas diferentes, eles vão aprender a se comportar"
Após duas semanas, o pai do Marcos morreu. Fiquei sem notícia sua, pois ele mudou de escola. Afogado no rio do meu quarto, encontrei salvação na escrita. Herdei da minha avó a paixão por Literatura de Cordel. Estimulado por ela, participei de um concurso de jornal da época. Escrevi uma pequena história chamada a saga dos meninos foragidos. Inventei personagens para as crianças que um dia fomos, sobre a infância que nunca mais teremos.
Recordei tudo isso enquanto via meu sobrinho atravessar o gramado feito um redemoinho. Cumprimentei minhas tias e comi coxinhas enquanto conversei com minha prima. Antes de partir o bolo, meu tio falou sobre minha avó e me chamou para fazer uma homenagem. Recordei sua alegria de viver durante o discurso perante toda nossa família. Radiante, entre sorrisos e lágrimas. Vovó me deu o primeiro pedaço de bolo: "Que bom que Deus me deu saúde pra te ver Professor"
Naquela noite dormi com gosto de algodão doce derretido na ponta da língua. Durante a madrugada, acordei de um sonho. Eu estava no palco de um programa dos anos 80. Porta dos desesperados. Não sei por qual razão, mas travei na hora de escolher uma porta. Acordei com desejo de retornar para saber o que eu iria encontrar. Mas o desejo de comer o rubacão de mainha me fez levantar da cama. Fui ao supermercado comprar coca para o almoço em família. Quando chegou minha vez na fila de pequenas compras, dei bom dia para a moça do Caixa. "O senhor vai querer CPF na nota?" Levei um tempo para responder. Não mais que 3 segundos. Mas para mim ali perdi a noção de tudo no instante em que reconheci a cicatriz acima da sobrancelha.
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