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A Carta a Daniel Pennac

Por:   •  9/7/2021  •  Ensaio  •  1.963 Palavras (8 Páginas)  •  163 Visualizações

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São Paulo, 28 de novembro de 2020

Querido Daniel,

você não me conhece, mas, para mim, já é um querido. Acho que devo começar me apresentando, né? Eu me chamo Laura e sou estudante de Geografia na Universidade de São Paulo. Eu devo te contar nessa carta o que eu aprendi com a didática, essa disciplina incrível da licenciatura ministrada por uma professora tão meiga e preocupada que dá vontade de colocar num potinho (e levar para dar umas aulas a alguns professores da Universidade rs...), mas primeiro eu quero te contar algumas coisas...

        Eu sei que quero ser professora desde os 15 anos. Ouvi diversas vezes que eu era inteligente demais para cometer esse “desperdício”, que eu deveria ser médica ou advogada... bati boca contra esse tipo de absurdo incontáveis vezes ao longo do ensino médio. Eu queria mudar o mundo, sabe? Queria mudar o mundo através da educação. Queria usar o potencial humano, real e transformador da Geografia para mostrar às crianças e aos jovens que o mundo ao redor deles era DELES e que eles nunca deveriam perder o espírito questionador da infância ou a “rebeldia” da adolescência. Eu vi na Geografia uma linda aliada ao caminho que eu queria traçar, uma ferramenta potente para entender – e, principalmente, questionar – o mundo. Eu queria ser A Melhor Professora de Geografia do Mundo para o máximo de crianças e jovens que eu conseguisse. Acontece que eu sempre quis MUITO ser boa em absolutamente TUDO que eu fizesse, então eu me tornei um belo macaquinho adestrado que tirava de letra qualquer questão de vestibular na escola.

Eu era uma “aluna nota 10”. Isso fez com que eu passasse em todas as provas das faculdades que eu prestei com 17 anos – e eu me orgulhei muito disso, me orgulhei do meu esforço. Comecei minha graduação na USP em 2017 com um brilho no olho que dava gosto de ver. E aí, no meu primeiro semestre, na minha primeira prova da graduação, eu tirei 1,0. Meu. Deus. Chorei como se não houvesse amanhã, questionei minha capacidade cognitiva, questionei se ali era meu lugar. Como eu seria uma boa professora de Geografia se eu tirei 1,0 em História do Pensamento Geográfico? Eu li os textos, estudei à beça e consegui tirar UM?! Meu Deus, eu sou tão BURRA! Fui falar com o professor com lágrimas nos olhos, fui tentar entender o que eu tinha feito de errado e ele me disse, seco : “eu não pedi uma redação do ENEM, minha cara... você foi muito rasa”. Ali, naquele momento, eu entendi. Todas as críticas que eu tinha ao sistema de ensino, à escola, aos professores, elas nunca tinham sido tão palpáveis. Nem tão dolorosas.

        Até aquele momento, eu só tinha aprendido a reproduzir que nem um gravador. Eu absorvia o máximo de conteúdo possível para despejar em infinitas questões de múltipla escolha e dissertações genéricas de 30 linhas, e apagar da minha mente algumas semanas depois – quando eu teria que enchê-la com novos conteúdos e começar tudo de novo. Eu fui uma vítima muito bem-sucedida da educação bancária da qual Paulo Freire fala. E agora, na graduação, eu tinha de aprender a não mais sê-la.

        E ficou tudo bem, sabe? Passei em HPG e em todas as outras matérias até então (espero continuar assim rs), minhas notas não são mais minha grande preocupação e posso dizer, agora, no fim do quarto ano de graduação, que aprendi como se faz um fichamento de verdade, aprendi a ler textos com qualidade, aprendi a participar com afinco das aulas, a ser uma aluna ativa e (mais) questionadora. Mas... algo estava errado. Aquele brilho no olho... eu já não o via mais. Seja pelos noticiários e pela realidade brasileira tão deprimente aos atuais e futuros professores, seja por tantas experiências horríveis com alguns grandes pós-doutores da “Melhor Universidade da América Latina” que não tinham nada de educadores, eu estava triste, desanimada. Eu só queria me formar e ir embora dali. “Uma andorinha só não faz verão, né? Tanto faz se eu continuar ou não, nada vai mudar. Cansei.”, eu dizia. Foi com esse espírito que eu abri minha licenciatura no segundo semestre de 2020, numa tentativa de tomar fôlego e voltar a enxergar o copo meio cheio. E aí encontrei a didática.

        Sabe, Daniel, eu aprendi muito sobre educação nessa disciplina, mas também aprendi coisas importantes sobre mim mesma. Tive discussões lindíssimas e ricas com meu grupo de trabalho, me emocionei diversas vezes lendo seu livro “Diário de Escola” e outras tantas escrevendo essa carta. Pensar o ensino como ato de resistência contra a exclusão social de jovens que não se adaptam ao sistema escolar é tudo que eu sempre quis. Olhar para mim ao longo desse semestre e conseguir me enxergar como sujeito ativo nessa mudança, nesse pensamento, foi estarrecedor! Construir uma educação escolar que vai contra esse sistema opressor se mostra a única forma de fazer com que o universo da escola, ao invés de decretar o sucesso ou o fracasso dos jovens, torne-se um local propício ao desenvolvimento das potencialidades de cada estudante, e com a didática eu finalmente me vi capaz de fazer isso.

        Ao longo desse semestre, eu pude refletir muito sobre o papel da escola na sociedade e sobre a responsabilidade do professor em lutar pela mudança dessa organização que já está estabelecida há séculos. Aristóteles já falava que os homens têm em si o desejo de conhecer, de aprender. O ambiente escolar foi projetado para repassar todo esse conhecimento historicamente acumulado àqueles que o buscam; a escola, então, deveria ser uma instituição a funcionar muito bem, visto ser “natural” ao ser humano buscar o conhecimento, querer aprender, certo? Mas vemos que não é bem assim que funciona, seja na França ou no Brasil.

Com o processo de globalização e a consequente evolução e organização do sistema capitalista a nível mundial, a escola passa a ser também um ambiente de reprodução desse sistema, uma vez que esse fenômeno permeia todos os âmbitos das relações sociais. E assim como nem todos os países estão equipados tecnológica, científica ou economicamente, e muitos deles ao invés de participar ativamente no processo de globalização passam na verdade a ser globalizados, também as pessoas de uma mesma sociedade, não tendo as mesmas oportunidades/potencialidades/capacidades, acabam por ficar à margem do processo, o qual, em sua essência, não espera por ninguém, não tendo qualquer espírito de fraternidade ou solidariedade. Tudo isso fez total sentido quando você nos disse, em seu livro, que devemos agir contra a solidão e a vergonha do aluno que não entende, pois ele está perdido em um mundo em que todos os outros se entendem. Esses outros se adaptaram a esse método de receber conteúdos e reproduzir o que lhes pediam. O ensino, até mesmo o de nível superior, muitas vezes não proporciona aos jovens estudantes qualquer tipo de questionamento ; na verdade, parece que hoje se transmite ao aluno o essencialmente transmissível, incapacitando-o de desenvolver seu lado crítico e argumentativo, tudo em prol de que ele apreenda o mais rápido possível uma quantidade de conteúdo específico que se julga “útil”. Não interessa ao sistema que as pessoas sejam seres autônomos pensantes, não é mesmo? E é aí que eu acredito que entra o professor, indo contra esse sistema, fazendo com que os jovens entendam o seu papel de sujeitos históricos e saiam do marasmo em que se encontram, alcançando, cada um, a própria liberdade enquanto indivíduos sociais.

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