O NASCIMENTO DE UM ESQUETE
Por: Paulorg • 4/12/2018 • Trabalho acadêmico • 1.994 Palavras (8 Páginas) • 382 Visualizações
O NASCIMENTO DE UM ESQUETE
Por: Jorge Raskolnikov
Personagens: Diretor, Zelador.
Cenário: O palco com apenas uma cadeira em cena.
ATO ÚNICO
Cena única.
(O Diretor entra em cena passando no meio do público. Chega para mais um dia de ensaio. Traz alguns papéis sob o braço. Vai até o palco, senta-se na cadeira, pega os papéis e começa a folheá-los. Depois de algum tempo fica impaciente. Retira um aparelho celular do bolso e olha as horas.)
DIRETOR: (Falando pra si mesmo) Todo mundo atrasado! Que merda! Engraçado é que todos deram a certeza de que não se atrasariam pro ensaio hoje... (Espera durante um bom tempo) Não agüento mais... Pra mim foi a gota d’água! (Fica de pé) Não dá mais, tô cansado de trabalhar com amador! Um chega pra mim e diz: (Imitando alguém) “Pode deixar, diretor vou atuar como se minha vida dependesse disso!” A outra com cara de puta que ta a fim de fazer freguesia diz: (Imitando voz feminina) “Ah, meu sonho sempre foi ser atriz, amanhã eu estou aqui pra dar tudo de mim!” Dar?! Eu sei o que ela... (Mudando de tom) Teve outro que falou que tava deixando tudo pela arte teatral! Um cara que não sabe nem lê direito e sonha em trabalhar na novela das oito! Nem sabe o que é teatro! Mas isso é comum, basta falar em ser ator e quase todo mundo pensa em novela ou pior ainda, em malhação... (Em outro tom) Gente, a coisa mais difícil de entender, apreciar nesse país é o teatro! Fazer então e quase impossível! (Defensivo) Vocês podem achar que eu estou exagerando, mas não, não é exagero nenhum. Quando vocês virem uma peça de teatro por aí, assistirem de fato um espetáculo podem sair dizendo que viram um milagre. Uma coisa que não deveria existir. Uma verdadeira excrescência! É isso mesmo! Pessoal, é necessária tanta coisa pra se fazer uma peça de teatro que se torna quase impossível montar uma! É... (Sacode os papéis como se tencionasse se abanar) E você pode me dizer: “Você ta falando isso, mas quase todo dia na cidade temos espetáculos em cartaz”. (Sorrindo com ironia) Gente, isso é um acidente! Sim, isso mesmo, um acidente! Essas peças que tão aí é o que sobrou de milhões de tentativas! É... Geralmente o que é visto aí é o que sobrou. Alguém teve a idéia de montar um texto, reuniu uns dez aspirantes a atores, distribuiu papeis, começou a ensaiar. Nesse meio tempo os tais atores foram saindo. Um simplesmente sumiu, o outro arranjou um emprego, alguém descobriu que tinha outros ambientes onde podia assumir a homossexualidade, fulano foi ameaçado de ser deserdado se ainda se metesse com esse negócio de teatro; sicrano achou virar melhor fazer concurso pra guarda municipal; fulana descobriu que tava grávida e por aí vai... Deve ter sobrado dois ou três que queriam impressionar alguém, adaptaram um texto famoso, cortaram em três pedaços, sortearam uma dessas partes e resolveram encenar aquilo no formato Brecht-Stanislawisk-Artaud-caralho-de-asa-pós-dramático! E aí apresentaram um (Fazendo com os dedos indicadores e médios o sinal de aspas) “esquete” pra um público que não entendeu nada do que viu... Também pudera o troço não tem sentido nenhum mesmo! E tem gente se orgulhando do teatro que anda fazendo. Não conseguem nem fazer o povo ir ao teatro sem bilheteria e reclamam que ninguém gosta de teatro, valoriza a cultura! (Em outro tom) Eu já tô de saco cheio! Um diretor de verdade, um artista como eu não merecia tá numa situação como essa! Não sei o que eu ainda faço nessa cidade! Como vou ensaiar, construir uma cena no palco com gente tão limitada, sem visão artística! O ensaio é pra começar as sete, o primeiro ator que vem chega às sete e meia, vem outro oito, outro oito e quarenta e mais outro nove... Dez horas o elenco todo tá reunido, mas o que chegou sete e meia precisa ir embora. Tem como? (Pausa, folheia os papéis nervosamente) Mas acho que o culpado de tudo sou eu... Sim, eu que ainda fico dando uma chance a essa gente ingrata! Eu um cara com um currículo artístico que só pode ser apreciado e compreendido num lugar onde as pessoas tenham um mínimo de conhecimento. Não nesse lugar onde teatro é somente (Repete o gesto indicando aspas) “esquete”! (Pausa) E ainda vem um ou outro que me aconselha a dirigir um monólogo! (Indignado) Eu odeio monólogo! Não suporto! Não gosto nem que falem disso perto de mim! Isso é o fim do teatro, a decadência, a morte dessa arte! (Possesso, gritando) Eu tenho ódio, um verdadeiro ódio de monólogo e de esquete!
(O Zelador entra interrompendo o discurso do Diretor)
ZELADOR: (Entrando) Senhor Diretor?
DIRETOR: Sim... (Olhando espantado, tentando reconhecer o outro)
ZELADOR: Senhor Diretor, eu...
DIRETOR: Espera, rapaz, antes de tudo me deixe lhe dar um abraço...
(O Diretor abraça o Zelador com bastante ânimo. O outro parece constrangido)
ZELADOR: (Constrangido) Obrigado, Senhor, mas...
DIRETOR: Não diga nada ainda meu rapaz, me deixe olhar pra você. (Observa o outro sem tirar a mão de seu ombro) Eis um jovem com algum compromisso artístico ainda!
ZELADOR: (Cada vez mais constrangido) Obrigado, obrigado, Senhor...
DIRETOR: Saiba que o futuro da arte teatral repousa sobre seus ombros meu jovem. (Conduz o Zelador com a mão no seu ombro até o centro do palco)
ZELADOR: Hã?!
DIRETOR: Olha, deixe eu te dizer uma coisa... Uma coisa boa! Vou lhe dar o melhor papel nessa peça, aliás, vou lhe dar os melhores papéis nesse grupo. Você merece, rapaz, você é muito responsável. (Se afasta do Zelador) E olha... (Em tom profético) A maior qualidade de um ator é a disciplina! (Silêncio incômodo) Entendeu?
ZELADOR: (Depois de um tempo. Confuso) Acho que sim...
DIRETOR: (Orgulhoso) Gostou? Essa fui eu mesmo que criei...
ZELADOR: Hum hum...
DIRETOR: (Aproximando-se do Zelador) Mas me diga, rapaz, que papel você tem na peça? Não, não, nem precisa dizer... Que papel você deseja ter nessa peça? (Entrega as folhas para o Zelador)
ZELADOR: (Recebendo as folhas) Eu?
DIRETOR: (Empolgado) Sim. Você!
ZELADOR: Aí é que está, eu não sou ator!
DIRETOR: (Para o público) E ainda por cima é humilde! (Voltando-se para o Zelador) Mas você será um dia, meu rapaz...
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