O SONHO QUE QUEREMOS
Por: Juliana Aidg • 13/6/2021 • Pesquisas Acadêmicas • 2.421 Palavras (10 Páginas) • 118 Visualizações
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SONHO QUE QUEREMOS ...
Alessandra Caldas Juliana Rodrigues
A palavra é o meu domínio sobre o mundo Clarice Lispector
O FILME E UM EPISÓDIO ESPECIAL QUE NOS FAZ PENSAR
O filme Sonhos (DREAMS, 1990) é de Akira Kurosawa, diretor que se tornou um dos cineastas mais importantes e influentes da história do cinema.Com uma carreira de mais de cinquenta anos, Kurosawa dirigiu trinta filmes, vários curtas, apresentando sempre sua cultura em seus trabalhos.
“Sonhos são a expressão de desejos ardentes que o homem procura dissimular dentro de si mesmo enquanto desperto, mas que se liberam enquanto ele dorme, se materializam sob a forma de acontecimentos reais”, disse Kurosawa ao apresentar seu filme em Cannes. Para o diretor, apesar de sua extravagância, os acontecimentos que vivemos num sonho têm a mesma intensidade e a mesma carga sensorial de uma experiência vivida, porque os sonhos cristalizam nossos desejos mais puros e mais urgentes.
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Depois desta experiência, essencialmente cinematográfica, de sonhar o sonho de outro, durante o filme, sentimos as lembranças dos sonhos da infância – pela dança das raposas na festa de casamento, por exemplo; ou um sonho da maturidade – pela dança dos habitantes da aldeia dos moinhos vento, em outro episódio; ou ainda, pelo canto triste dos demônios que choram com gestos inspirados na coreografia tradicional do Kabuki ou uma lembrança mais viva a recordação do sonho com Van Gogh e do sonho no túnel, em que o soldado sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, volta para casa perseguido por todos os que ficaram nos campos de batalha. Tristezas e alegrias, medos e coragem, dos sonhos de Kurosawa, transformam-se em nossa memória depois de visto o filme, incorporando-se à nossa vida.
Neste filme, dividido em oito capítulos diferentes, mas que conversam entre si, escolhemos o episódio O Túnel, quarto sonho que é apresentado em um ambiente melancólico de misturas de cores, no início da escuridão da noite. A imagem deste episódio é sombria.
O sonho se inicia com um capitão do exército japonês (será Kurosawa?), com roupa surrada e barba por fazer, voltando para casa após a guerra e que caminha sozinho para um túnel escuro. Na escuridão do túnel ouve-se um ganido seguido de um uivado, que fazem o soldado se assustar e recuar. O ganido e o uivado pertencem a um cachorro que aparece saindo do túnel carregando em seu dorso alguns documentos enrolados e duas sacolas de granadas de mão, indo na direção do comandante que, mostrando-se extremamente agressivo com dentes pontudos à mostra, corre para perto dele e rosna.
Estas são lembranças, provavelmente, dos tantos animais que foram explodidos durante a guerra, quando eram enviados contra o inimigo. A iluminação vermelha que incide sobre o cachorro, mais o seu latido sobrenatural, dão a ele um ar assustador. Ele deixa o soldado acuado e o força a entrar no túnel. O túnel se torna cada vez mais frio e escuro, mas, mesmo assustado, o oficial segue o risco central do túnel para não se perder e prossegue sua andança. Ele eventualmente “vê a luz no final do túnel”, mas é uma luz de anoitecer, fria, azul-escura, e um poste com uma luz vermelha.
Ao longo da caminhada, o oficial/soldado começa a ouvir passos e, atrás de si, aparece um soldado que se chama Noguchi, uniformizado, sujo, portando sua arma, com um olhar frio e olhos pretos, pele branca azulada mostrando estar morto. Ao encontrar com seu oficial faz a saudação e interroga se ele realmente foi morto nos campos de batalha O trabalho do oficial que havia comandado aquele soldado é convencê-lo de que ele realmente está morto e não pode prosseguir o caminho para casa, já que o soldado ainda está apegado à vida terrena, em um perpétuo estado de autonegação de sua morte. Ele se recusa a acreditar que está realmente morto e conta alguns fatos de quando era vivo e que pensa estar voltando para casa para se reencontrar com sua família.
O comandante perplexo confirma que Noguchi está morto e lamenta a perda, o soldado sem saber o que fazer sai em direção ao túnel, contudo o comandante o chama e, sem se falarem, ambos batem continência um para o outro e Noguchi volta para dentro do túnel. O comandante muito emocionado o vê se perdendo na escuridão do túnel e, novamente, fica perplexo ao ver o Terceiro Pelotão inteiro marchar para fora do túnel ao comando de um sargento, que anuncia: “Terceiro Pelotão voltando para a base, senhor! Nenhuma baixa!”.
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Visivelmente emocionado, o oficial se dirige aos seus companheiros de guerra: “Escutem! Sei como devem estar se sentindo. No entanto, o Terceiro Pelotão foi aniquilado! Todos vocês morreram em combate!”. O pelotão continua imóvel; um silêncio constrangedor é a resposta deles para a declaração do comandante que tenta ter uma reação deles, com uma fala que vai se tornando cada vez mais tensa:
Sinto muito. Eu não morri. Sobrevivi. Mal consigo encarar vocês! Mandei vocês para a morte. Eu sou o culpado! Eu poderia colocar toda a responsabilidade na estupidez da guerra, mas não sou capaz de fazer isso. Não consigo negar minha falta de cuidado, minha má conduta. Ainda assim... Fui capturado. Sofri tanto no campo de prisioneiros que senti o sabor da morte! E agora, olhando para vocês, sinto novamente a mesma dor. Sei que o sofrimento e a tortura de vocês foram muito maiores. Mas... Honestamente... Eu preferiria ter morrido com vocês (SONHOS, 1990).
O foco muda mais uma vez para o Terceiro Pelotão. Eles continuam silenciosos e impassíveis. “Preferia mesmo, acreditem! Percebo a amargura de vocês”, afirma o comandante. “Diz-se que morreram pela pátria, mas vocês morreram como cães”.
O comandante, muito emocionado, informa ao seu Terceiro Pelotão, novamente, que todos foram aniquilados na guerra, pedindo desculpas por terem sido enviados para morte. Outra vez, pede perdão pelo seu erro e pede para seus soldados voltarem para descansar em paz. Mas, os soldados continuam não tendo nenhuma reação: ficam parados, perplexos, todos prontos a continuar a lutar, todos contrários à ideia de que estão mortos. Continuam necessitando das ordens do oficial para sairem. Assim este faz: arruma sua farda e dá ordens ao seu Terceiro Pelotão para se retirarem e estes o obedecem e voltam para o túnel. Novamente, o oficial em forma de continência (sinal de respeito) vê seu pelotão sumir na escuridão da noite do
túnel. O sonho termina com o surgimento do cachorro, dessa vez mais feroz; no entanto, o oficial aparenta menos medo que na sua
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