UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO NO ENSINO FUNDAMENTAL: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS PRÁTICAS
Por: Bia Ferreira • 14/10/2015 • Trabalho acadêmico • 7.521 Palavras (31 Páginas) • 688 Visualizações
UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO NO ENSINO FUNDAMENTAL: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS PRÁTICAS Adriane Blum Santos * drikablum@hot mail.com Professora do Colégio Estadual Dorah Gomes Daitschman da rede pública do Estado do Paraná. Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar e discutir concepções de letramento, bem como a importância de se trabalhar com gêneros textuais a fim de propiciar ao aluno o domínio de uso das linguagens verbais e não verbais pelo contato direto com textos de variados gêneros orais e escritos, bem como aprimorar, pelo contato com a diversidade textual, a capacidade de pensamento crítico. Para tanto, inicialmente, é traçado um panorama das concepções de letramento, como também a de gêneros textuais que subsidiam teoricamente este trabalho. A seguir, é apresentado o resultado da intervenção desenvolvida em turmas de Ensino Fundamental do Colégio Estadual Dorah Gomes Daitschman. Através das atividades propostas procurou-se conceber a língua como fenômeno interativo, dinâmico e constitutivo de ações humanas. Tais práticas proporcionam a compreensão do letramento como um fenômeno que envolve um variado conjunto de conhecimentos, capacidades, valores, usos e funções sociais da escrita. Na implementação desse projeto, o trabalho com gêneros textuais se fez necessário, uma vez que estes podem ser considerados como legítimos representantes da ação social. Palavras-chave: Leitura. Escrita. Ensino-aprendizagem. Gêneros textuais. Letramento. Abstract: The present article aims to present and to discuss lettering conceptions, as well as the importance of working with textual genres in order to propitiate the student the domain of use of the verbal and not verbal languages through the direct contact with oral and written texts of varied genres, as well as to improve, by the contact with the textual diversity, the capacity of the critical thought. For so, in the beginning, an overview of the letter conceptions is drawn, as well as the ones of textual genres that subsidize this work theoretically. In the sequence, the result of the intervention developed with groups of Fundamental Teaching of Dorah Gomes Daitschman State School. Through the proposed activities it was tried to conceive the language as an interactive, dynamic and constituent phenomenon of human actions. Such practices offer the understanding of the lettering as a phenomenon that involves a varied group of knowledge, capacities, values, uses and social functions of the writing. In the implementation of that project, the work with textual genres was necessary, once these can be considered as legitimate representatives of the social action. Word-key: Reading. Writing. Teaching-learning. Textual genres. Lettering 1 INTRODUÇÃO 1 LETRAMENTO é uma palavra relativamente nova no contexto da Educação e das Ciências Lingüísticas, surgindo no discurso dos especialistas dessas áreas na segunda metade dos anos 80. Mas o que explica o surgimento recente dessa palavra? O termo “LETRAMENTO” surgiu com o avanço da tecnologia e com as exigências cada vez mais acentuadas em relação ao uso da leitura e da escrita na sociedade contemporânea. Como observa Britto (no prelo), “Apesar dos vários meios de comunicação eletrônica, continuamos a viver em uma sociedade grafocêntrica, em que a leitura e a escrita são um instrumento essencial de participação.” (BRITTO, p. 3) No entanto, só recentemente passou-se a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente. Britto (2008, p. 3) reforça essa idéia quando diz, Ser letrado’ significa, acima de tudo, ser funcionalmente alfabetizado, isto é, ser capaz de usar da escrita para a realização das tarefas cotidianas características da sociedade urbano-industrial. Em outras palavras, o letramento, deste ponto de vista, se resume ao fato de o modo de produção supor um uso de escrita que permita aos indivíduos operar com as instruções de trabalho e normas de conduta e de vida. Daí a necessidade urgente de desenvolver no aluno através da leitura, interpretação e produção de diferentes gêneros de textos, habilidades de leitura e escrita que funcionem dentro da sociedade. Segundo Magda Soares (1998, p. 107) o letramento consiste de um grande número de diferentes habilidades, competências cognitivas e metacognitivas, aplicadas a um vasto conjunto de materiais de leitura e gêneros de escrita, e refere-se a uma variedade de usos da leitura e da escrita, praticadas em contextos sociais diferentes. A referida autora assegura ainda que, 2 Letramento é muito mais que simplesmente decifrar códigos, ele é um estado, uma condição: o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com as diferentes funções que a leitura e escrita desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita. Primeiramente será traçado um panorama de algumas concepções de leitura e escrita, bem como uma rápida abordagem sobre gêneros textuais e, na seqüência, serão relatadas as atividades que foram desenvolvidas inter e multidisciplinarmente em algumas turmas do Ensino Fundamental no Colégio Estadual Dorah Gomes Daitschman. 2 LEITURA E ESCRITA - UM BINÔMIO INSUBSTITUÍVEL Durante muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do “B+A=BA” e a leitura uma mera decifração de palavras. No momento atual, parece inconcebível que se reduza o conceito de leitura/escrita a mera sistematização e decifração de palavras. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre as pessoas que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar o código da leitura. Com o crescente avanço tecnológico, o final do século XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira condição para a sobrevivência e a conquista da cidadania. Poder ler e escrever, interagir com os textos escritos e com os conhecimentos e informações que se veiculam e, desta forma, operar com os referenciais que se constituem na tradição cultural da escrita, tudo isso é condição essencial de participação social. (BRITTO, p. 3) 3 Com as profundas transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas surgiu o termo “letramento”, um neologismo que amplia os conceitos do que tradicionalmente se conhecia por alfabetização. Da necessidade de re-significar os conceitos de leitura/escrita e dissociá-los do processo inicial de aquisição é que começam a ganhar espaço os estudos sobre a prática de letramento. Para viabilizar o trabalho com o letramento se faz necessário um conceito de ensino de leitura/ escrita como prática social, que dê conta dos vários tipos de conhecimento que interagem nos processos interpretativos: conhecimento lingüístico textual, conhecimento prévio de mundo, de práticas sociais gerais e discursivas; ou seja, é preciso ver o processo de leitura e escrita na sua abrangência social e não apenas na sua dimensão cognitiva. Torna-se, dessa forma, premente a necessidade de desenvolver e testar novos caminhos para incentivar os alunos, professores e indivíduos em geral a se interessarem em contestar e por muitas vezes quebrar o círculo do senso comum daquilo que parece natural, não problemático, mas que recria e reforça formas de alienação. Tal abordagem é respaldada por Paulo Freire, o qual concebe a educação como uma forma de organizar o pensamento do sujeito possibilitando-lhe uma visão crítica do mundo, tornando-o capaz de usar a leitura e a escrita de maneira consciente de modo a conhecer e intervir na realidade. Ao permitir que o sujeito interprete, sistematize, confronte, documente, informe, oriente-se, reivindique, e garanta a sua memória, faça, enfim, efetivo uso da leitura/ escrita, o letramento garante-lhe uma condição diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não necessariamente conquistado por aquele que apenas domina o código. Compactuamos com Magda Soares quando afirma que o aprender a ler e a escrever implica não apenas o conhecimento das 4 letras e do modo de decodificá-las, mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado contexto cultural. Corroborando esse conceito encontramos a seguinte afirmação: Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (... dos professores), tanto na pré-escola quanto no ensino médio, seja a utilização da escrita, em sala, correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o ponto de partida e de chegada do processo de ensino-aprendizagem da língua é o texto falado ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se estabelece numa determinada situação discursiva. (LEITE, p. 25) 3 METODOLOGIA O suporte teórico deste artigo encontra respaldo na concepção sócio-interacionista preconizada por Vigotsky e Bakhtin e tem como ponto principal a contribuição da mediação na formação mental do indivíduo. O aluno, nesta concepção, é parte de um contexto social e deve ter iniciativa para questionar, descobrir e compreender o mundo através da interação dialógica entre o sujeito e os diversos gêneros textuais. As atividades propostas no projeto que foi a gênese desse artigo enfatizam o ensino da leitura e da produção de texto; habilidades básicas para que os alunos possam exercer sua condição de cidadãos. Elas se organizam em torno da leitura e escrita para que o ensino da língua se dê por meio de situações de uso efetivo, aprendendo a ler e produzir textos em situações contextualizadas. Nas sociedades letradas faz-se fundamental o conhecimento dos gêneros da escrita, uma vez que eles se encontram em constante metamorfose para dar conta da variedade de atividades desenvolvidas no cotidiano. 5 Optou-se, então, por trabalhar com o tema “Meio ambiente e cidadania”, pois a questão ambiental está em alta por uma simples razão: a necessidade de sobrevivência da raça humana. Quanto mais cedo o tema for abordado com as crianças e jovens, maiores as chances de despertar a consciência pela preservação. O ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita devem fazer parte das atividades de todas as disciplinas. Portanto, cabe aos professores de todas as áreas o trabalho sistemático com tais habilidades. Sob essa perspectiva optou-se por trabalhar em parceria com outras disciplinas, o que possibilita enfatizar que, trabalhar com leitura e escrita não é uma prerrogativa apenas do professor de Português, mas é função primordial da escola fazer do aluno um sujeito leitor, tornando-o um cidadão com personalidade ética, promovendo e desenvolvendo o seu senso crítico e compartilhando com ele conhecimentos que transcendem a vida cotidiana. Kleiman (2002, p.7) afirma que “A palavra escrita é patrimônio da cultura letrada, e todo professor é, em princípio, representante dessa cultura.” 4 GÊNEROS TEXTUAIS - ALGUMAS REFLEXÕES O tema em si - gêneros textuais – não é novo e vem sendo tratado desde os anos 60 quando surgiram a Lingüística de Texto, a Análise Conversacional e a Análise do Discurso. Tomando por base as afirmações de BAKHTIN (1997) de que a “comunicação verbal só é possível por algum gênero textual” busca-se manifestar nesta perspectiva a língua como atividade social, histórica e cognitiva. A noção de gênero textual tem despertado grande interesse, principalmente a partir de sua incorporação em documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), que apontam os gêneros como objeto de ensino e os textos como unidade de ensino. De acordo com os PCN’s ensinar língua supõe ensinar diferentes gêneros. Mas 6 afinal, o que são gêneros textuais? Quais as diferenças entre gêneros textuais e tipos textuais? Segundo Marcuschi, o conceito de gênero textual relaciona-se a uma concepção de língua viva, de língua como uma atividade social e histórica, de língua como produtora da história dos homens. Tal concepção privilegia a natureza funcional e interativa, em detrimento de aspectos formais e estruturais da língua. Segundo essa visão, é impossível comunicar-se verbalmente a não ser por algum gênero, assim como é impossível comunicar-se verbalmente a não ser por um texto. Já o conceito de tipo textual designa uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição (léxico, sintaxe, tempos verbais, etc.) e, em geral, abrange algumas poucas classificações (narração, argumentação, exposição, descrição, injunção). A noção de gênero textual refere-se aos textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sóciocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica (MARCUSCHI, 2002). 5 O TRABALHO COM LEITURA E ESCRITA- ALGUNS RECORTES DA PRÁTICA Conforme Marcuschi (2003), todos os textos se manifestam sempre num ou noutro gênero textual e são veiculados em um suporte, ou seja, um portador do texto, mas não como um meio de transporte, mas sim, como um locus físico ou virtual, que tem formato específico e que serve de base ou ambiente de fixação dos gêneros materializados como texto. O trabalho com discurso e gêneros textuais relacionados ao desenvolvimento desse projeto estão ancorados nas DCE’s, que preconizam a relevância do referido assunto quando reforçam que, 7 O gênero, antes de constituir um conceito, é uma prática social e é esta a perspectiva que deve orientar a ação pedagógica com a língua, privilegiando o contato real do estudante com a multiplicidade de textos que são produzidos e circulam socialmente. DCE’s (2006). Cabe ressaltar que a implementação do projeto aqui relatado tem como princípio a concepção de que leitura e escrita não são apenas conteúdos de Língua Portuguesa. São práticas necessárias em todas as disciplinas e em todas as séries. Sob esse prisma o trabalho desenvolveu-se de forma interdisciplinar com outras áreas do conhecimento. A princípio, a proposta seria implementada numa turma de 5ª série, mas devido às circunstâncias políticas da escola, ou seja, ao processo de distribuição de aula, o projeto foi remanejado para uma turma de sala de apoio. Tais alunos apresentam sérias dificuldades de aprendizagem, previamente diagnosticado, fator esse que inviabilizou as primeiras tentativas de desenvolvimento do conteúdo elaborado a partir de uma turma regular. Posteriormente, em acordo com a direção e equipe pedagógica o trabalho foi re-direcionado para outras turmas do Ensino Fundamental, mais precisamente para as 8ª séries. As atividades foram realizadas simultaneamente às ações desenvolvidas para a III CONFERÊNCIA NACIONAL PELO MEIO AMBIENTE da qual a escola participou. O Lixo foi o tema trabalhado com os alunos e teve como objetivo sensibilizar a comunidade escolar sobre a necessidade de preservação do meio em que vivem, cuidando e preservando seu espaço. Inicialmente, foi elaborado um questionário para diagnosticar a realidade do bairro a fim de identificar ações norteadoras do trabalho. Na seqüência, os professores de Matemática, juntamente com os alunos, fizeram a tabulação dos dados obtidos elaborando gráficos. Os professores de Ciências, de Geografia e Educação Artística trabalharam na elaboração e confecção de cartazes sobre o assunto, sendo que o 8 melhor cartaz representou o colégio na referida Conferência. As disciplinas das demais áreas curriculares também contribuíram com produções de textos, elaborando HQ’s, cartuns, panfletos, folders, jornal, tiras, paródias e poesias relacionadas ao tema. Os alunos confeccionaram fantoches com material reciclável, produziram peças para teatro de bonecos e receberam às crianças das escolas de 1ª a 4ª séries do bairro em nossa escola para apresentações teatrais conscientizando-os sobre a importância de se preservar o meio ambiente. Já os trabalhos realizados em sala de aula foram apresentados na Feira Cultural da escola a fim de garantir a socialização do material produzido pelos alunos, como também recuperar o caráter interlocutivo da linguagem. As atividades desenvolvidas tiveram como fio condutor os textos selecionados para o “FOLHAS” (material didático produzido), os quais apresentam uma grande diversidade de gêneros textuais, veiculados em suportes tais como jornal, cartum, folder e panfleto a fim de propiciar o domínio de uso das linguagens verbais e não verbais, visando desenvolver no aluno, através da leitura, interpretação e produção de diferentes gêneros textuais, habilidades de leitura e escrita que funcionem dentro da sociedade, incentivando-o também a praticá-las socialmente de forma criativa, descobridora, crítica, autônoma e ativa, já que a linguagem é interação e, como tal, requer a participação transformadora dos sujeitos sociais que a utilizam. Procurou-se incluir não apenas a visão crítica da linguagem, mas também a visão de um mundo melhor pelo qual vale à pena lutar. Os textos selecionados para compor a coletânea tocam de alguma forma no tema “MEIO AMBIENTE E CIDADANIA”. Tendo em vista que as habilidades de linguagem desenvolvem-se em situações de uso real por meio das funções sociais que desempenham, procurou-se planejar ações visando trabalhar a aplicação prática da língua escrita bem como sua incorporação no cotidiano de nossos alunos, ou seja, a linguagem formal ampliando e reestilizando conceitos de comunicação da linguagem coloquial. 9 As atividades propostas encontram suporte na concepção sóciointeracionista de Vigotsky e Bakhtin na qual o aluno é parte de um contexto social e deve ter iniciativa para questionar, descobrir e compreender o mundo através da interação dialógica entre o sujeito e os diversos gêneros textuais. O trabalho com gêneros textuais encontra respaldo também nas DCE’s que preconiza, O gênero, antes de constituir um conceito, é uma prática social e é esta a perspectiva que deve orientar a ação pedagógica com a língua, privilegiando o contato real do estudante com a multiplicidade de textos que são produzidos e circulam socialmente. Como todas as esferas da atividade humana são mediadas por gêneros, que são utilizados conforme o propósito comunicativo, os interlocutores, o conteúdo, as propriedades funcionais, o estilo e a composição característica, pode-se afirmar que os gêneros são instrumentos para uma ação discursiva. É impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto. Em outros termos, partimos da idéia de que a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual. MARCUSCHI, (2002, p. 22), 5.1 OS GÊNEROS TEXTUAIS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Os trabalhos propostos tiveram como objeto de estudo a linguagem, vista como processo de interação entre sujeitos sócio-historicamente situados, e não mais a língua, isolada do contexto em que é produzida, concebida como um sistema de regras estáveis. 10 Estudar a linguagem significa, portanto, ir além do quadro das estruturas lingüísticas para analisar o sentido de um discurso como processo dinâmico de retomada e modificação, produzido numa situação de enunciação única. (FRANÇOIS, 1993, apud CUNHA, 2007, p. 167) Nessa perspectiva, como afirma Cunha, o sentido não está nas formas da língua, mas num conjunto de semiologias, ou seja, de elementos produtores de sentido, que se atualizam na interação: os verbais, formas da língua organizadas em enunciados; os não-verbais, o olhar, os gestos, os movimentos faciais e corporais e a entonação, na fala; a estrutura visual do gênero e os elementos paratextuais – título, subtítulo, autor, gênero, suporte, tamanho e formato da letra, e os elementos tipográficos, na escrita. É evidente que a produção de sentidos é muito complexa, incluindo, além dos elementos verbais e não verbais, uma série de não ditos, porções de texto que serão inferidas, em função dos conhecimentos partilhados entre os interlocutores. Isso significa que a linguagem só é compreendida se tivermos acesso a seus elementos constitutivos: participantes, lugar, tempo, propósito comunicativo (convencer, explicar, responder, elogiar, dizer verdades ou mentiras, agradar, criticar, etc.) e às diferentes semiologias que entram em jogo na sua produção. De acordo com os PCN’s é preciso que as situações escolares de Ensino de Língua Portuguesa priorizem os textos que caracterizem os usos públicos da linguagem. Os textos selecionados para análise e que farão parte deste trabalho são aqueles que favorecem a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas, bem como a fruição dos usos artísticos da linguagem. “Habilidades de linguagem desenvolvem-se em situações de uso real, por meio das funções sociais que elas podem desempenhar. Os alunos necessitam vivenciar situações que permitam aprimorar habilidades que já possuem e desenvolver novas capacidades.” (ZORZI, 2003, p.25) 11 Segundo estudos realizados pelo Grupo de Genebra, em especial, nas abordagens desenvolvidas por Schneuwly e Dolz que propõem um trabalho com a língua materna a partir da diversidade de gêneros, uma vez que esses funcionam como instrumento de mediação de toda a estratégia de ensino, sendo a matéria prima desse trabalho de ensinoaprendizagem, a leitura e escrita no contexto textual. Para tanto, Schneuwly e Dolz propõem um trabalho com a diversidade de gêneros em todos os níveis escolares, variando a complexidade a cada ano de acordo com a faixa etária dos alunos. A escolha dos gêneros trabalhados no projeto teve como referência o agrupamento de gêneros sugerido pelos autores pertencentes à Escola de Genebra que tem por objetivo uma maior aproximação entre os gêneros com as mesmas características, definindo para cada um deles algumas capacidades de linguagem em relação às tipologias que se deve construir ao longo do processo ensino aprendizagem. De acordo Schneuwly/Dolz (2004), podemos reunir os gêneros textuais em cinco agrupamentos: narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações. 5.2 GÊNEROS DA ORDEM DO ARGUMENTAR Esse gênero textual está relacionado ao domínio social da discussão de assuntos sociais controversos, objetivando um entendimento e um posicionamento frente a eles, exigindo para tanto, sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição. Com o objetivo de levar o aluno a refletir assuntos polêmicos atuais, bem como desenvolver sua capacidade de pensamento crítico, a fim de lhes abrir caminho para a avaliação da realidade e de si mesmos, como também a adoção de opções existenciais com base em seu julgamento sugeriu-se a leitura do cartum abaixo criado por Henfil, o qual faz parte da coletânea de textos do “FOLHAS”. 12 O texto foi apresentado, inicialmente, como pretexto para que os alunos também produzissem outro, dando-lhes abertura para desenvolverem a subjetividade e proporcionar-lhes uma reflexão sobre a realidade em que estão inseridos, bem como evidenciar a valorização de leitura de mundo imediata desses alunos. A escolha do cartum deve-se ao fato de ser ele um texto de caráter extremamente crítico que retrata de forma bastante resumida algo que envolve o dia-a-dia de uma sociedade. É fundamental levar nosso aluno a saber interpretar esse tipo de linguagem - a do desenho - para que possam ler também o que não está escrito. A crítica abordada no texto em questão diz respeito à exploração das riquezas de nossa pátria tão bem retratadas nas cores da nossa bandeira. O trabalho realizado com o significado das cores foi extremamente importante na elaboração das atividades posteriores, pois permitiu ao aluno fazer uma leitura diversa em relação às cores, enriquecendo a interpretação e leitura que faz de sua realidade. É importante comentar também o trabalho realizado com a inscrição ORDEM e PROGRESSO, que do ponto de vista semântico proporcionou a exploração dos múltiplos significados dessas palavras. O vocábulo PROGRESSO, até pouco tempo atrás, era visto como sinônimo de desmatamento, de crescimento a qualquer custo e sem bom senso, enfim, a palavra foi atrelada a um crescimento desordenado, como se o progresso justificasse qualquer coisa, inclusive 13 a destruição indiscriminada do meio ambiente no decorrer do processo de desenvolvimento do Brasil. Os resultados obtidos com a proposta de releitura do cartum foram satisfatórios, pois se compreendeu que se em outros tempos não havia o conhecimento da fragilidade dos recursos naturais, hoje a situação é bem diferente. Existem informações e comprovações de que o Planeta não pode suportar impunemente tanto crescimento para se obter mais lucro. É preciso sensibilizar a nova geração para defender o uso racional dos recursos naturais. Os trabalhos indicaram, tanto na parte verbal como na não verbal, que os alunos extrapolaram despontando de uma visão do problema mais geograficamente restrita para uma visão mais ampla, pois conseguiram relacionar o texto com o contexto globalizado da situação, atrelando o problema não somente ao nosso país, o Brasil, mas ao Planeta. Percebe-se que os alunos não tiveram dificuldades em interpretar o cartum, pois conseguiram aproximar o texto a sua realidade psicológica, histórica, social, e sua produção reflete um refinamento cognitivo e emocional, bem como socializador, evidenciando um senso crítico bastante apurado como se pode conferir pelos trabalhos abaixo exemplificados. Fig. 1 14 Fig. 2 Os trabalhos produzidos permitem uma compreensão de que estamos em um novo tempo, uma época em que neologismos como reciclar, estão cada vez mais presentes no vocabulário das pessoas. Ficou claro que os alunos conseguem movimentar-se nesse discurso que defende não ser mais possível fomentar o desenvolvimento econômico sem pensar na preservação dos recursos naturais, ou do pouco que ainda nos resta, e que este não pode ser um movimento isolado em termos de nações ou países. As palavras “sujeira, desmatamento, lixo-nuclear, bomba-atômica, poluição contaminação, efeito estufa, gás carbônico e veneno” empregadas na figura 2 subsidiam a reflexão de que é preciso analisar com profundidade esses conceitos resultantes de uma visão de mundo equivocada. Hoje não mais se aceita a destruição em nome do progresso, pois cada vez mais o homem busca novas formas de desenvolvimento sustentável em relação ao nosso planeta. È importante, também, ressaltar a relação entre a palavra progresso, presente no cartum de Henfil e a palavra desenvolvimento (sustentável), à qual se relacionam as palavras reciclar, reutilizar 15 empregadas na figura 1 presentes nos textos dos alunos e que são predominantes no discurso “ecologicamente correto” sendo um reflexo desse novo paradigma de análise da política econômica atual. Com efeito, as palavras progresso e desenvolvimento não se equivalem: elas estão ancoradas em discursos diferentes, sócio-historicamente marcados, sobre a forma de gerar riqueza. 5. 3 GÊNEROS DA ORDEM DO RELATAR Segundo Werlich (1973) a narrativa caracteriza-se como um enunciado textual com verbo de mudança no passado, um circunstancial de tempo e lugar. Por sua referência temporal e local, este enunciado é designado como enunciado de ação. Os gêneros da ordem do relatar são narrativas no sentido definido por Werlich, mas com a especificidade de comportarem os textos pertencentes ao domínio social da memorização e documentação das experiências humanas, situando-as no tempo. O trabalho envolvendo esses gêneros fez parte de um processo que resultou na produção de um jornal. “Tendo em vista que o letramento refere-se às práticas de uso da escrita em situações específicas, com objetivos específicos” (KLEIMAN, 1995), o grande desafio posto hoje para os educadores é trazer a realidade para dentro da sala de aula, utilizando textos do cotidiano. Pensando em desenvolver nos alunos a capacidade de ler e escrever bem como formas de apreensão do mundo, optou-se pela elaboração de um jornal. Os gêneros da mídia têm sido objeto de inúmeros estudos nos últimos anos, com uma grande diversidade de enfoques em função do instrumental teórico adotado. A escola também passou a estudá-los com o objetivo de formar leitores críticos e construtores dos diversos textos que circulam na sociedade. A entrada dos diferentes gêneros jornalísticos na escola como objeto de ensino-aprendizagem encontra seu respaldo na 16 necessidade de compreensão e domínio dos modos de produção e significação dos discursos da esfera jornalística, criando condições para que os alunos construam os conhecimentos lingüístico-discursivos requeridos para a compreensão e produção desses gêneros, caminho para o exercício da cidadania, que passa pelo posicionamento crítico diante dos discursos. (RODRIGUES, 2000, p. 214) Antes da produção propriamente dita, os alunos leram, discutiram os temas e analisaram a estrutura de alguns jornais (local e estadual) e das matérias diversas que o constituem. Após essa familiarização com a estrutura do jornal e sob a orientação da professora, aconteceram visitas a locais específicos do bairro visando obter informações detalhadas sobre a real situação do meio ambiente dentro da comunidade local. Conforme Marcuschi (2002), o domínio do gênero jornalístico envolve a capacidade de representação pelo discurso de experiências vividas e situadas no tempo. Tal abordagem fundamentou-se em pressupostos coerentes com a concepção dialógica e social da linguagem, delineada a partir de BAKHTIN e do Círculo de Bakhtin, segundo a qual toda produção humana de linguagem jamais nasce sem ter na sua origem a preocupação de se dirigir a alguém (PARANÁ, 2006, p. 67). Nessa perspectiva, a linguagem é vista como de ação entre sujeitos histórica e socialmente situados que se constituem uns aos outros em suas relações dialógicas, assumindo a concepção de língua como discurso que se efetiva nas diferentes práticas sociais. A função primordial da educação escolar é contribuir para o desenvolvimento intelectual e social dos alunos - em especial no que concerne aos conhecimentos que expandem o cotidiano e rompem com o senso comum. (BRITTO, 2008). Após os alunos passearem pelo bairro constatou-se que a problemática é bem mais complexa do que se acreditava a princípio. O destino do LIXO bem como os prejuízos causados ao MEIO AMBIENTE pela ação irresponsável do homem sensibilizou os alunos, oferecendo subsídios para a elaboração de algumas das matérias. A seguir 17 apresento a primeira página dos resultados desse processo de letramento e as páginas complementares encontram-se nos anexos. Os trabalhos produzidos e que foram selecionados para fazer parte do jornal mostram que a escrita de uma notícia tem por objetivo levar informações, ou seja, visa a fazer saber, são do tipo textual narrativo, com verbos no passado e em terceira pessoa para referir-se às seqüências de ações no tempo e procuram responder às questões: O quê? Quem? Quando? Onde? 18 As atividades desenvolvidas possibilitaram ao aluno não somente exercitar a leitura e a escrita, mas também refletir sobre o uso que se faz da linguagem nos diferentes contextos e situações. Nas aulas foram explorados diferentes gêneros jornalísticos, principalmente a notícia e a reportagem. Os gêneros da esfera jornalística se mostraram um eficiente instrumento para a leitura e produção de textos por parte dos alunos. Procurou-se enfatizar o caráter dialógico da reportagem por se constituir no relato ampliado de um acontecimento, enquanto a notícia, de caráter monológico, ou seja, produz o efeito de um puro registro dos fatos, ou seja, enquanto a notícia relata um fato de forma mais ligeira e impessoal, a reportagem dá a conhecer um fato com maior profundidade, ampliando-o não só com dados estatísticos, fotografias, etc., mas também com a opinião do jornalista e de pessoas envolvidas com o caso. Os textos 1 e 2 exemplificam claramente essa distinção. Texto 1 ALUNOS VISITAM O BAIRRO E ENCONTRAM LIXO DEPOSITADO EM LUGARES IMPRÓPRIOS No dia 13 de maio de 2008, uma equipe de alunos da 8ªC, juntamente com a professora de Língua Portuguesa, saíram percorrendo o Jardim Santa Mônica com o objetivo de fotografar pontos de degradação ambiental. Nas imediações da Gruta Santa Mônica o grupo se deparou com muito lixo e também em córregos e terrenos baldios. É uma pena ver tanto lixo jogado pelo bairro, entupindo esgotos e trazendo varias doenças para a população. É preciso se conscientizar e por em prática a coleta seletiva do lixo. Além de contribuir com o meio ambiente é também uma fonte de renda para catadores que muitas vezes sobrevivem deste trabalho. É importante cuidar do nosso lixo. Coletar, separar e reciclar, tornando nosso meio ambiente melhor. As futuras gerações, com certezas, nos agradecerão. WAGNER A. LEAL, GABRIEL P. E NAFIS G. DOS SANTOS – 8ª c 19 FEIRA-VERDE VISA MELHORAR MEIO AMBIENTE UMA MANEIRA CONSCIENTE DE APROVEITAR MELHOR O SEU LIXO Em nossa cidade, o prefeito Pedro Wosgrau Filho está realizando um projeto denominado FEIRA-VERDE, o qual iniciou em 3 de dezembro de 2007. O engenheiro agrônomo Fernando Blum, 23, coordenador do programa, conta que “o objetivo desse projeto é realizar a troca de material reciclável por frutas, verduras e legumes. Com isso estaremos ajudando a preservar o meio ambiente, contribuindo com a limpeza de nossa cidade e ainda enriquecendo a alimentação da população”. O projeto funciona de segunda à sábado e percorre 28 vilas da cidade. Conta com uma equipe composta de 15 pessoas, sendo: três motoristas, sete encarregados de descarregar o caminhão e cinco que cuidam de fazer a troca. “Muitas famílias vêm fazer a troca de carrinho de mão. Eles também estão coletando óleo de cozinha, o qual servirá para fabricar sabão em vez de poluir o meio ambiente”, fala Fernando Blum. O lixo reconhecido segue para uma Associação de Catadores, onde é separado, enfardado e encaminhado para reciclagem. As frutas distribuídas à população são adquiridas de pequenos produtores de nosso município. Segundo Fernando Blum, o bairro Santa Mônica é o que mais tem participado do programa. “A comunidade está de parabéns, pois percebe-se uma conscientização em preservar o meio ambiente”, conclui o agrônomo. Valdirene Sauter de Moraes, Viviane de Fatima da Silva 8ª série C O texto 1 pode ser caracterizado como uma notícia, pois se preocupou em informar o fato de uma forma mais rápida procurando responder as questões: O que aconteceu? Onde? Quando? O texto 2 pode ser definido como uma reportagem. Nele percebese que o aluno procurou estabelecer conexões reproduzindo trechos de entrevistas, o que evidencia a existência de outras vozes além da do jornalista que noticia o fato. O discurso do engenheiro agrônomo Fernando Blum é introduzido pela expressão “segundo”, que reforça a idéia de que a opinião apresentada é dele e não do jornalista. Evidencia-se também o uso de aspas para indicar que a fala dele está sendo reproduzida fielmente. 20 O trabalho com o jornal mostrou-se bastante produtivo, pois muito contribuiu na formação de leitores críticos e construtores de diversos textos que circulam na sociedade, desenvolvendo nos alunos as habilidades envolvidas no processo de produção desses textos. Além disso, vale ressaltar que numa sociedade onde os meios de comunicação de massa exercem forte influência sobre a população de um modo geral, e sobre os jovens em particular, a percepção do papel da mídia na formação da opinião pública e na geração de uma consciência crítica é fundamental. Neste sentido, refletir sobre o trabalho com os gêneros da esfera jornalística nas aulas de linguagem e seu papel na construção da cidadania é fundamental. 5.4 GÊNEROS DA ORDEM DO NARRAR Também são narrativas no sentido especificado por Werlich (1973), mas envolvem textos cujo domínio é o da cultura literária ficcional, marcados pela manifestação estética e caracterizados pela mimesis da ação através da criação, da intriga no domínio do verossímil. Os textos da ordem do narrar materializaram na produção dos alunos como textos dramáticos para teatro de fantoches, paródias, HQ’s, fábulas, poemas, os quais possibilitaram aos alunos extrapolar a realidade movimentando-se pelo mundo da imaginação. Nestas atividades, o texto literário foi trabalhado na perspectiva de sua materialidade. Há propostas que focalizam o conhecimento textual referente às características da linguagem poética ouà estrutura global de textos narrativos, além dos aspectos estruturais de textos do tipo poético, narrativo e teatral. A fábula, O BEIJA-FLOR, propiciou trabalhar o tema solidariedade ao abordar a questão de como cada um pode fazer algo em prol do bem comum, por menor que seja sua participação. Depois da leitura do texto, a turma sentiu-se com argumentos para uma boa discussão oral regada, naturalmente, com suas próprias experiências pessoais. A 21 tarefa proposta, a produção de um texto dramático para teatro de fantoches, ficou fácil de ser redigida. A dramatização é uma atividade imprescindível nos dias de hoje, pois socializa o aluno através de comportamentos desejáveis como: espírito de grupo, cooperação, solidariedade, responsabilidade, coragem e disciplina. Esse tipo de atividade desenvolve a capacidade criadora, levando o aluno a pensar, idealizar e realizar, bem como desenvolver hábitos, atitudes e valores morais. A atividade proposta oportunizou, também, a aquisição de habilidades de produção de textos, enriquecimento de idéias e vocabulário, entonação, pronúncia, ritmo de voz e melhor dicção, conforme se pode observar na amostra a seguir. 22 Entre as atividades de leitura e produção textual, destaca-se também aquela que teve como texto motivador o poema Canção do Exílio de Gonçalves Dias. Após as atividades de leitura, expressão oral, compreensão e interpretação do poema, os alunos foram instigados a produzir parodicamente um texto poético a partir do poema trabalhado. Essa atividade permitiu o trabalho com a intertextualidade, que pode ser definida como um diálogo entre dois textos. O poema abaixo faz referência ao texto de Gonçalves Dias numa clara correspondência entre eles e na materialização de rizomas, uma vez que o texto foi criado tomando como ponto de partida outro texto. Canção do Exílio Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar — sozinho, à noite — Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, 23 Onde canta o Sabiá. Gonçalves Dias Coimbra, julho de 1843 Difícil encontrar quem não conheça pelo menos os primeiros versos do célebre poema do poeta maranhense Gonçalves Dias (1823- 1864). A Canção do Exílio é considerada o maior fenômeno de intertextualidade da cultura brasileira. O trabalho realizado mostra que a aluna revisitou o canto gonçalvino empregando um tom paródico, discutindo os problemas relacionados à destruição do meio ambiente. Em sua releitura, a aluna afirma que sua terra já foi mais bela sem violência e destruição negando, dessa forma, o nacionalismo, bem como o tom singelo de amor à pátria do poema. A reescrita demonstra uma visão crítica da realidade. No final, fica evidente o diálogo entre os textos quando a aluna retoma o verso “Não permita Deus que eu morra” demonstrando uma esperança em ver tudo isso melhorar. 24 Essa atividade permitiu também verificar a capacidade dos alunos de relacionarem textos, admitindo a multiplicidade de leituras por eles suscitadas. É fundamental que o processo ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa baseie-se em propostas interativas a fim de promover o desenvolvimento do aluno numa dimensão integral. Portanto, sob essa perspectiva é preciso desenvolver no educando a capacidade de identificar um intertexto. Deve-se investir na idéia de que todo texto é o resultado da leitura de outros textos. Dessa forma, um texto novo é sempre oriundo de outros textos orais ou escritos. Por isso, é imprescindível levar o aluno a perceber esse processo de retomada assim como as suas conseqüências para a visão de mundo de cada sujeito. Depois de realizado todo esse processo é importante garantir a socialização da produção textual, pois, dessa forma, além de se recuperar o caráter interlocutivo da linguagem, garante-se a constituição dos autores dos diferentes textos e dos seus possíveis leitores em sujeitos do fazer lingüístico. Os textos produzidos pelos alunos foram publicados no Jornal Consciência Ecológica, o qual foi distribuído aos alunos, pais e professores durante a Feira Cultural promovida pelo Colégio. 5.5 GÊNEROS DA ORDEM DO DESCREVER AÇÕES Reúne textos cujo domínio social é o das instruções e prescrições, visando a regulação ou normatização de comportamentos. Todas as atividades humanas são mediadas por gêneros textuais, que se constituem como instrumentos utilizados pelos sujeitos para executar uma dada ação. No que diz respeito aos gêneros de cunho injuntivo percebe-se que o intuito de fazer agir é incitado de forma explícita. Um enunciado é injuntivo se exprimir uma ordem de execução ou não execução de uma determinada ação. Por vezes, emprega-se a 25 expressão “função injuntiva” para designar a função apelativa da linguagem, por meio da qual o autor conduz seu interlocutor a reagir de um determinado modo. As formas verbais específicas deste gênero textual estão no modo injuntivo e o modo imperativo é uma das formas do injuntivo. A relevância desse gênero textual é indiscutível para a nossa vida sócio-cultural, uma vez que orientam os sujeitos para a realização e normatização de muitas das nossas práticas sociais. Toda vez que se engaja em uma atividade de comunicação verbal o produtor textual está realizando uma ação e esperando uma reação do seu interlocutor. Deve-se reconhecer que, nos textos injuntivos, essa ação é incitada explicitamente, oferecendo-se os comandos que deverão orientar essa ação. Segundo Silva, ...as formas de ação de linguagem verbal podem ser bastante variadas, conforme as funções sociocomunicativas assumidas é possível agrupar os textos injuntivos em três categorias, de acordo com o caráter pragmático em comum: (1) textos instrucionais-programadores, cujo objetivo é ensinar a fazer algo que não é necessariamente obrigatório; (2) textos de conselho, cujo propósito é aconselhar alguém a fazer algo; (3) textos reguladores-prescritivos, cuja finalidade é obrigar alguém a fazer algo, pois, do contrário, haverá algum tipo de punição. (SILVA, 2007, p. 5) Esse grupo engloba textos variados de instrução, regras, normas e pretendem, em diferentes domínios, a prescrição de ações, exigindo, muitas vezes, a regulação mútua de comportamento. Para tanto, foram trabalhados textos desses gêneros e como produção-ação optou-se pela elaboração das regras de boa convivência em sala de aula, como também a produção de um panfleto os quais foram entregues durante a realização da Feira Cultural do colégio. Segue exemplos abaixo. Texto 1 26 O texto 1 é um panfleto que veiculou um texto injuntivo, uma vez que se encontra claramente constituído por verbos no imperativo, ou seja, enunciados incitadores à ação. Estes textos podem sofrer certas modificações significativas na forma e assumir, por exemplo, a configuração mais longa onde o imperativo é substituído por um “deve”. Analisando-se os textos produzidos pelos alunos constata-se que fazem parte da categoria dos textos de conselho, pois se pede apenas que as pessoas conheçam algumas alternativas simples para ajudar o planeta visando à mudança de comportamento e atitudes. 6 CONCLUSÃO 27 Em conclusão a estas observações sobre o tema em pauta, podese dizer que o trabalho com gêneros textuais é uma extraordinária oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia. Os trabalhos incluídos neste artigo buscam oferecer sugestões bastante claras e concretas do trabalho com os gêneros textuais, explicitando os elementos teóricos que dão sustentação a elas. As atividades foram planejadas e desenvolvidas de forma a possibilitar aos alunos a reflexão sobre sua própria produção- tais como atividades de revisão e de reestruturação de seus textos. A relevância maior de tratar os gêneros textuais acha-se, particularmente, situada no campo da Lingüística Aplicada. De modo todo especial no ensino de língua, já que se ensina a produzir textos e não a produzir enunciados soltos Vale reforçar a idéia de que o trabalho com gêneros textuais será uma forma de dar conta do ensino dentro de um dos vetores da proposta oficial das Diretrizes Curriculares Estaduais que tem como objetivo possibilitar aos alunos a ampliação do uso das linguagens verbais e não verbais através do contato direto com textos dos mais variados gêneros, concebidos pelas necessidades humanas. É necessário que a inclusão da diversidade textual dê conta de relacionar os gêneros com as atividades sociais onde eles se constituem. Enfim, é utilizando a língua oral e escrita em práticas sociais, sendo avaliados continuamente em termos desse uso, efetuando operações com a linguagem e refletindo sobre as diferentes possibilidades de uso da língua, que os alunos, gradativamente, chegam à almejada proficiência em leitura e escrita, ao LETRAMENTO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997. 28 BRITTO (no prelo). CORREA, D.A & Saleh, P.B. de O. (orgs). Estudos da linguagem e currículo: diálogos (im)possíveis. Editora da UEPG: Ponta Grossa (no prelo). BRITTO, Luiz Percival Leme. In: CORREIA, D. A. ; SALEH, P. B. de O. (orgs), Práticas de letramento no ensino: leitura, escrita e discurso. São Paulo: Parábola Editorial; Ponta Grossa, PR: UEPG, 2007. CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. O funcionamento dialógico em notícias e artigos de opinião: In: DIONÍSIO, Angela P.; MACHADO, Anna R.; BEZERRA, Maria A. (Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. FIORIN, José Luiz, Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. LEITE, S. A. S. ( org ) , Alfabetização e letramento: contribuições para as práticas pedagógicas. Campinas: Komedi/Arte Escrita, 2001. KLEIMAN, Ângela, Oficina de leitura: teoria e prática. 9. ed. 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