A Introdução à Psicanálise Lacaniana
Por: Witt1910 • 26/8/2019 • Ensaio • 4.557 Palavras (19 Páginas) • 122 Visualizações
Projeto: Introdução ao Pensamento de Jacques Lacan
Data: 07/12/2018.
Texto base: O Sujeito Lacaniano – Bruce Fink.
PARTE 1 – ESTRUTURA: ALIENAÇÃO E O OUTRO
CAPÍTULO 1 – LINGUAGEM E ALTERIDADE
Um lapso de língua do Outro
Comecemos por uma situação prática: imaginemos uma mulher que faça análise há algum tempo e que, num dado dia, no transcorrer da sua fala ela diga o seguinte: “às vezes acho que eu não era uma filha muito boa, outras vezes penso que eu não merecia sofrer com os ataques de mau humor da minha pãe”.
Suponhamos que ela queria dizer mãe, mas foi “pãe” o que ela disse.
Lapsos de língua, no contexto de uma análise, nos fazem lembrar que vários discursos operam em paralelo e podem se fazer representarem por um mesmo porta-voz. O que quer dizer que existem várias dimensões, várias camadas num mesmo discurso.
Uma imagem possível para essa noção é o carro de auto-escola, em que uma pessoa, o aluno, tem acesso a todos os recursos e pode dirigir o carro, dentro do que ele for capaz de fazer, dado seu status de principiante, inexperiente. Mas o professor também tem ao seu dispor recursos para intervir na direção, e tem seus próprios interesses, independente do que o aluno queira fazer ou mesmo faça. Um carro, dois motoristas, um à frente, outro podendo intervir, mas sem nunca assumir o controle total. Grosso modo é uma metáfora para a coexistência de dimensões diferentes num mesmo discurso.
Podemos partir desse exemplo e observar a existência de dois níveis diferentes de discurso coexistindo: um discurso em que a paciente queria falar algo, em que ela tinha a intenção de passar uma ideia, e um discurso que ela não tinha intenção de fazer aparecer, que veio à tona meio que tropeçando, numa espécie de mistura da palavra “mãe” e talvez da palavra “pai”, ou quem sabe de outras palavras ainda.
Se pensarmos no exemplo, que é de uma análise em andamento, pode ser que o psicanalista já possua o conhecimento de que a analisanda tenha vivido uma relação conflituosa com o seu pai, que era uma pessoa difícil de lidar, mas que fosse tratado com muito cuidado por todos da família, que fosse extremamente protegido, haja vista sua saúde frágil, a ponto dela não poder criticá-lo, nem para si mesma, pelo mau humor e estupidez dele.
Já a analisanda talvez tenha associado a palavra “mãe” com a palavra “põe”, pelo som anasalado em comum, e que tenha se recordado de que, em determinada situação quando ela era criança e passeava de carro com a família, ela teria brincado que colocaria o braço para fora do carro e a sua mãe, num tom exageradamente rude, teria dito para ela: “põe, põe o braço para fora pra ver o que te acontece! Põe!”. E que nesse mesmo dia sua mãe e seu pai tiveram, à noite, a última briga feia do casal, quando seu pai, fragilizado, caiu de cama e passou a ser cuidado por todos os membros da casa e a mãe teve que assumir a família sozinha.
Quanto ao desenrolar desse exemplo, apenas as repercussões da reflexão que a analisanda fez, ou os efeitos de escutar uma intervenção do analista que a fizesse passar pelo ponto que ele mesmo considerou, daria o retorno sobre a assertividade de alguma das interpretações.
Da para notar num exemplo tão simples esses os dois tipos diferentes de discursos, de falas: um do dia-a-dia, em que pensamos no que queremos dizer e falamos daquilo que acreditamos saber, da gente, dos outros e do mundo; e um tipo diferente de fala que anda junto e às vezes se faz aparecer.
Talvez mais do que dois tipos diferentes de fala, podemos pensar em dois lugares psicológicos de fala: aquele em que a pessoa pensa no que quer dizer e se vê escolhendo as palavras e o sentido delas, ao qual chamaremos de “eu”, ou de “self”, como o “eu” que usamos numa frase como “eu gosto de você”. Já aquela fala estranha que meio que surge do nada, de maneira deformada, atravessada, estranha, seja num lapso, num trocadilho inesperado ou numa brincadeira espontânea que surpreende, nós diremos que ela parte de um lugar que Lacan chama de “Outro”. Esse conceito se escreve através da palavra “outro”, mas com o “o” maiúsculo, como de um nome próprio.
É importante uma ressalva aqui: Lacan teorizou sobre psicanálise por mais de 30 anos, o que ele quis dizer que os conceitos que ele inventou, podem ter sentidos diferentes em momentos diferentes da sua obra. Por exemplo, Lacan fala do conceito de Imaginário desde o início do seu ensino formal, em 1953, até 1981, ano e sua morte, e esse conceito não quer dizer em absoluto a mesma coisa ao longo das quase três décadas. Aqui cabe a mesma coisa, e esse é um dos usos do conceito de “Outro”.
Uma das formas de compreender o que Lacan chama de Outro é como um lugar especial que alguém ocupa e com o qual nos relacionamos quando nosso psiquismo é muito precoce, e é nessa relação que construímos muito do nosso ser. Podemos pensar na mãe de um bebê, ou qualquer cuidador que assuma o papel principal de maternagem, que tenha uma presença importantíssima para ele e que, nessa fase da vida, venha a determinar muitas das experiências que o bebê vai ter e que estarão na base da forma como lidará com as experiências que virão depois.
Por isso Lacan diferencia a escrita do “Outro” com “O” maiúsculo, nesse lugar de grande destaque e influência, do “outro” com “o” minúsculo, que são as demais pessoas, que afetam o sujeito, mas que não o modificam na mesma intensidade. Essa explicação é muito superficial, mas creio que por hora vai permitir que nós avancemos.
Pois bem, Freud chamava esse lugar da onde surge um discurso que não é intencional, que aparece como que escapado, sem querer, murmurado ou estranho, de inconsciente.
E Lacan vai dizer que o “inconsciente é o discurso do Outro” (esse “Outro” com “O” maiúsculo), e que é dele que se originam as palavras que escapam. E mais, que esse tipo de discurso paralelo se origina da relação com pessoas de importâncias primordiais na constituição do sujeito.
Resumindo: o discurso do eu, ou do “self”, é consciente e intencional. Já o Outro discurso, ou discurso do Outro é inconsciente e involuntário.
Uma pequena metáfora desse tipo de discurso, que não é exatamente ele, mas dá uma ideia de como funciona, ocorre quando escutamos de uma criança com seus quatro, cinco anos, uma fala ou um texto claramente adulto, com um nível de conhecimento que não condiz com a idade e com o intelecto da criança. Esse estranhamento que nos causa, em que a gente quase acredita que a criança entende o que está dizendo, até perceber, lá pelo meio da fala, que ela está reproduzindo algo que lhe fora dito, inclusive achando que ela mesma está dizendo o que realmente acha. Por isso que se diz discurso do Outro, pois inicialmente não era dela, ele veio desse Outro, e se incorpora sem que a criança perceba. Quando vê ela acha que faz parte dela, de todo o sempre, e é maios forte que ela, simplesmente “é”, para ela. Mas visto de fora sabe-se que ele foi incorporado em algum momento. Basicamente podemos pensar nessa como uma das formas de estrutura formação do inconsciente como discurso do Outro.
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