Os dois nascimentos do homem: Escritos sobre terapia e educação na era da técnica
Por: 291185 • 6/4/2017 • Resenha • 5.406 Palavras (22 Páginas) • 866 Visualizações
Os dois nascimentos do homem:
Escritos sobre terapia e educação na era da técnica
LIBERDADE
Liberdade é uma palavra que circula com muita frequência em nossa fala cotidiana. Falamos do direito à liberdade, aliás, previsto na Declaração dos Direitos Humanos; falamos de governos que não respeitam a liberdade, de pais que dão muita liberdade aos filhos, da liberdade de expressão, do medo da liberdade, da liberdade de escolha, da liberdade que se conquista, da liberdade que é importante não perder, da liberdade que precisa ser bem usada, e muito mais. Mas exatamente de que estamos falando com essa palavra? Seria a liberdade alguma coisa que nos dão ou que nos tiramí? Alguma coisa que precisa ser economizada e bem dosada? Certaimente sabemos o que é liberdade quando somos impedidos de realizar algo, ou de ser de uma determinada maneira; ou quando somos obrigados a fazer o que não queremos. E aí, então, rapidamente concluímos que ter liberdade é poder fazer o que desejamos, dizer o que pensamos, ir aonde queremos, recusar o que não queremos. Certamente, ter esses direitos implica liberdíade. Mas com isso não esgotamos o que há para ser compreendido no conceito de liberdade.
A partir do século 18 em diante, o conceito de liberdade passou a ocupar uma posição central tanto do ponto de vista político, com relação à liberdade dos povos, como do ponto de vista da necessidade de respeito pelos direitos individuais.
Essa é uma questão que pode ser abordada a partir de diferentes referências. Um ponto de vista muito importante é o de Hannah Arendt em seu livro Entre o passado e o futuro, cuja leitura nos parece fundamental.
Na reflexão que faremos aqui, seguiremos uma direção muito particular em direção à compreensão desse conceito. Trataremos de compreender a liberdade a partir do referencial da Daseinsanalyse.
O interesse que esse assunto desperta, ou seja, o apelo que o tema da liberdade exerce sobre nós, torna-se tanto mais forte quanto mais mergulhamos na época da técnica. Mas esse apelo se torna maior porque estamos cada vez mais livres ou porque estamos cada vez menos livres? E o que é ser mais livre ou menos livre? À medida que o conceito de liberdade ganha mais importância, sua compreensão fica mais difícil, mais obscura.
A concepção de liberdade assume uma forma genérica, parece que todo mundo sabe o que ela é. Mas quando tentamos dizer exatamente o que ela é, ficamos perplexos com a dificuldade que é descrever o que é isso que chamamos de liberdade. Parece que acontece algo parecido com o que acontecia com Santo Agostinho, que se referia à sua dificuldade para dizer o que era o tempo. Ele dizia, em seu livro As Confissões: “Quando falamos de tempo, sem dúvida compreendemos o que dizemos; o mesmo acontecerá se ouvirmos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada.” Embora, como todo mundo, ele soubesse o que era o tempo, na hora de defini-lo era como se não o soubesse, tudo ficava muito difícil.
Não pretendo aqui dar uma definição de liberdade, mas quero me aproximar desse conceito na tentativa de clarear a sua compreensão. Farei, num primeiro momento, uma caracterização do que é liberdade ou do que é ser livre, tanto sob o ponto de vista ôntico como sob o ponto de vista ontológico. Num segundo momento, falarei do que significa para o Dasein o apropriar-se do seu ser livre.
Começando a pensar onticamente a respeito do que é liberdade, vem-nos esta pergunta: o que é liberdade? Precisamos antes saber de que liberdade estamos falando. É da liberdade dos eventos? É da liberdade dos deuses? Ou é da liberdade dos homens? Pois, a partir do século 19, a liberdade, que era compreendida até então como algo próprio exclusivamente ao âmbito humano, torna-se também uma característica observável dos eventos. Assim, na física, fala-se em liberdade como caos, desordem, acaso, ausência de uma determinação causai detectável ou observável com os recursos disponíveis num determinado momento da história da ciência. E, quanto à liberdade dos deuses, o que seria isso? Aqui não se trata de uma referência religiosa, mas sim de uma certa noção de liberdade totalmente idealizada que temos vivido: a liberdade de fazer tudo o que se quer. Desse ponto de vista, liberdade e poder significam a mesma coisa. Temos, então, dois extremos: de um lado, a liberdade dos eventos, que significa caos; de outro lado, a liberdade dos deuses, que significa poder.
Mas a nossa questão é a liberdade dos homens, e essa é diferente. E, ao pensar na liberdade dos homens, a primeira coisa que me ocorre é que liberdade não existe, é ilusão; ela é muito mais um desejo dos homens que uma realidade. E essa ideia se apresenta porque a liberdade tem sido totalmente posta em questão desde o século 19. Darwin aponta o homem como resultado de um processo evolutivo mais ou menos ao acaso. Marx denuncia que a liberdade de escolha é orientada e dirigida pela dinâmica do conflito de classes; o homem é comandado por forças muito maiores que ele, sem se dar conta disso. Freud diz que, embora o homem pense que está agindo livremente, ele é levado a agir sob o comando de pulsões do inconsciente que determinam sua experiência e sua conduta. Nietzsche também questiona a autonomia da consciência dos homens. Portanto, a noção de liberdade da consciência vem sendo praticamente destruída.
O século 20 aprimorou ainda mais a destruição. A história e a antropologia, e aí temos Lévi-Strauss, mostram o quanto o comportamento do homem é determinado historicamente. As neurociências também contribuem para o descrédito da liberdade, e os estudos da genética apontam na mesma direção. Assim, por exemplo, li uma notícia que anunciava a descoberta do gene responsável pelo traço que leva alguém a ser revolucionário ou conservador, ou seja, o predomínio do determinismo. Há anos, vi em um pequeno artigo de jornal a informação de que o estu- prador, na verdade, pratica seu ato porque é impelido a disseminar os seus genes da maneira mais eficiente possível. Esse artigo me deixou profundamente irritado, porque o estupro não é um fato biológico, é um fato humano, e não existe referência possível de aproximação entre a realidade do estupro vivido pelos humanos e os conceitos biológicos de disseminação de genes. Enfim, parece que os conhecimentos adquiridos no mundo atual nos dizem que a liberdade é ilusória.
Mas há outros pontos de vista a serem considerados. A tradição mítico-religiosa, de certa forma, introduz e sustenta o conceito de liberdade. O que é a liberdade dos homens na perspectiva mítico-religiosa? Penso
...