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Química Verde

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Por:   •  26/8/2014  •  5.040 Palavras (21 Páginas)  •  196 Visualizações

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A química verde

Novo paradigma industrial

O papel da química é essencial para garantir que a próxima geração de produtos, materiais e energia seja mais sustentável do que a atual. O investigador Rui Pinto, doutorado em química farmacêutica, explica o que é a “química verde” e como estão a ser aplicados os seus princípios.

A ilha de Páscoa é conhecida pelas suas famosas e imponentes estátuas de pedra, as moai. Descoberta muito provavelmente por polinésios provenientes de ilhas próximas, cerca de 700-1100 a.C., a ilha tem sido apontada como exemplo para o alerta dos perigos culturais e ambientais da exploração excessiva. No século anterior à chegada dos europeus à ilha, em 1722, verificou-se um declínio drástico da população. As causas deste fenómeno foram atribuídas ao esgotamento das capacidades do ecossistema local: as florestas foram sujeitas a uma desflorestação extrema, para a agricultura, mas também para o auxílio à deslocação dos rochedos gigantes usados na construção das moai. Investigações recentes apontam que a destruição da flora local, associada à sobrepopulação, resultou no esgotamento e na erosão dos solos, na escassez de alimentos e, finalmente, no colapso da sociedade.

A história da ilha de Páscoa mostra que a sustentabilidade de uma civilização depende, simultaneamente, da capacidade de providenciar energia, alimentos e outros bens a uma população que aumenta rapidamente, sem comprometer os recursos a longo prazo.

O primeiro princípio da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) refere que os seres humanos têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza, estando no centro das preocupações para o desenvolvimento sustentável.

O conceito de desenvolvimento sustentável, definido como a capacidade de satisfazer as necessidades da geração presente sem comprometer a mesma capacidade das gerações futuras, foi introduzido no final dos anos 80. Entre os objetivos mais importantes para o desenvolvimento sustentável encontra-se a capacidade de reduzir as consequências nefastas das substâncias que produzimos e usamos, sendo o papel da química essencial para garantir que a próxima geração de produtos, materiais e energia é mais sustentável do que a -atual. Nasceu assim a chamada “química verde”, que não só mobiliza os laboratórios de investigação nacionais como já encontrou aplicações práticas em vários setores industriais.

Um longo processo

Num artigo recém-publicado na revista brasileira Química Nova, Adélio Machado, catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, discute o aparecimento da química verde. Segundo ele, o conceito não nasceu subitamente, num momento de inspiração genial de um qualquer académico. As ideias-base da disciplina foram o resultado de um longo processo desenvolvido por químicos industriais de processo e engenheiros químicos, a fim de tornar a indústria menos nociva para o ambiente, lidar mais eficazmente com a produção de resíduos e minimizar a sua quantidade. Numa fase posterior, este processo contou com a consciencialização dos químicos sintéticos para o problema dos resíduos. Esta aproximação da investigação académica aos objetivos da química industrial possibilitou o “salto final” para a construção do corpo teórico, que resulta da fusão de vários conceitos precursores e atividades industriais.

Por outro lado, nas últimas três décadas, a legislação ambiental tornou-se mais rigorosa, originando que os processos químicos, intrinsecamente geradores de resíduos industriais e poluição, evoluíssem no sentido de alternativas ambientalmente mais aceitáveis. Foram incentivadas tecnologias que contribuíssem para melhorar a eficiência energética, evitar o uso de reagentes e solventes perigosos ou tóxicos e reduzir ou, preferencialmente, eliminar a geração de resíduos perigosos ou tóxicos.

Fatores de pressão ao longo da cadeia de fornecimento de um produto químico, como o custo crescente das matérias-primas e da energia e a maior consciência dos problemas de saúde associados à manipulação de reagentes, solventes, produtos intermediários e produtos finais, passam a ser verdadeiramente determinantes nas opções tomadas. Os processos químicos, logo desde a sua fase inicial de desenvolvimento, são agora analisados sob todas as perspetivas, no sentido de obter processos e produtos com o menor impacto ambiental.

Rendimento e sustentabilidade

O conceito tradicional de eficiência de um processo químico centra-se exclusivamente no rendimento (quantidade de produto obtido face à quantidade esperada num processo 100% eficiente). Analisando uma reação química deste ponto de vista, apenas se considera a quantidade de produto obtida após a sua purificação e isolamento.

No entanto, motivados pela resposta da indústria na procura da sustentabilidade, muitos químicos académicos de síntese passaram a refletir sobre a gravidade do problema dos resíduos. Esta mudança de visão resultou na introdução dos conceitos de “economia atómica” e de “fator ambiental E” (de environment, ambiente em inglês), que não só incorporam fundamentos teóricos, mas permitem também ser utilizados como medida de avaliação do impacto ambiental dos processos.

A economia atómica, conhecida igualmente como “utilização atómica” ou “eficiência atómica”, foi introduzido em 1991 por Barry Trost, professor da Universidade de Stanford (Estados Unidos). A economia atómica calcula-se dividindo o peso molecular do produto desejado pela soma dos pesos moleculares de todas as substâncias produzidas nas reações envolvidas. Este parâmetro é especialmente útil quando se comparam as quantidades de resíduos de processos alternativos.

O fator E é definido como a relação entre as quantidades do resíduo/desperdício e do produto desejado obtidas para um determinado processo. Esta medida foi introduzida por Roger Sheldon, professor da Universidade de Delft (Países Baixos), e mede a quantidade real de resíduos produzidos. Leva em conta o rendimento químico, e inclui reagentes, solventes, desperdícios, todos os auxiliares químicos do processo e, em princípio, até mesmo a energia envolvida (medida em quantidade de combustível, embora esta seja muitas vezes difícil de calcular).

Estes novos conceitos para avaliar as reações implicaram um modo inovador de olhar para a química de síntese. A reação evolui do modelo clássico de objetivo único (o produto final, no rendimento máximo) para um novo modelo que integra três objetivos complementares: produto final, no rendimento máximo; maximização da incorporação dos átomos dos reagentes no produto final; e minimização da formação de resíduos, não só os derivados dos reagentes, mas também os solventes, os auxiliares, a energia, etc.

Desafio verde

No início dos anos 90, a agência de proteção ambiental dos Estados Unidos (EPA) criou uma linha de financiamento específica para projetos científicos e industriais destinados ao desenvolvimento de novas alternativas sintéticas ambientalmente mais aceitáveis, caracterizando o nascimento da química verde. Em 1996, por iniciativa da Administração de Bill Clinton, foi criado o Presidential Green Chemistry Challenge, com o objetivo de premiar inovações tecnológicas que permitam reduzir o impacto ambiental dos processos químicos, focando-se em três áreas-chave: vias sintéticas, condições de reação e desenvolvimento de produtos ambientalmente mais aceitáveis.

No ano seguinte, assistiu-se à criação do Green Chemistry Institute (GCI), reunindo diferentes pessoas provenientes da indústria, do governo e da academia, para promoção e desenvolvimento da química verde. Desde 2001, o GCI atua em parceria com a American Chemical Society para promover interesses comuns na descoberta e no desenvolvimento de produtos e processos que eliminem a formação e a utilização de substâncias perigosas.

Na Europa e noutros países desenvolvidos, foram criados organizações científicas e incentivos similares. Em Inglaterra, por exemplo, a Royal Society of Chemistry (RSC), com o apoio de setores industriais e governamentais, instituiu em 2001 os UK Green Chemistry Awards, para premiar empresas e jovens investigadores que desenvolvam processos, produtos e serviços que levem a um ambiente mais sustentável, limpo e saudável.

Em 1998, a RSC financiou a criação da Green Chemistry Network (GCN), com o objetivo de facilitar a educação, a formação e a prática da química verde na indústria, na academia e nas escolas, bem como promover a consciencialização governamental para esta área. Outra importante iniciativa da RSC foi a criação, em 1999, da revista Green Chemistry, dedicada à publicação de artigos inéditos na área, que constitui hoje uma referência de topo na publicação de trabalhos de investigação neste domínio.

Portugal acompanhou este movimento internacional. Vários grupos académicos, por vezes através da colaboração com universidades e institutos de investigação estrangeiros, começaram a refletir nos seus trabalhos as ideias ligadas à sustentabilidade. Em 2000, foi criado o REQUIMTE, Rede de Química e Tecnologia, resultante da fusão de duas unidades de investigação, o Centro de Química da Universidade do Porto (CEQUP) e o Centro de Química Fina e Biotecnologia da Universidade Nova de Lisboa (CQFB).

No ano seguinte, o REQUIMTE tornou-se o Laboratório Associado para a Química Verde – Tecnologias e Processos Limpos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), com a missão de explorar os princípios da química verde: contribuir para uma prática sustentável, encorajando a utilização de produtos e tecnologias limpas, auxiliar a indústria no desenvolvimento e na implementação de novos processos, promover a formação de jovens investigadores em áreas multidisciplinares e contribuir com massa crítica para a resposta a questões e a resolução de problemas levantados pelas autoridades e pela sociedade em geral.

O laboratório, dirigido pelo professor Baltazar de Castro, do CEQUP, tem presentemente cinco linhas de investigação transversais: novos compostos proveniente de fontes renováveis, qualidade e segurança alimentar, controlo analítico e automação de processos, processos limpos e biologia e bioengenharia química. Os investigadores nacionais e estrangeiros do REQUIMTE contribuíram, nos últimos três anos, com mais de mil artigos publicados em revistas científicas, 61 teses de doutoramento, 265 teses de mestrado e 27 patentes, 13 das quais foram registadas a nível internacional.

Em 2008, foi criado o prémio Solvay & Hovione Innovation Challenge (SHIC), sob o patrocínio da Solvay Portugal e da Hovione, empresas do setor químico e químico-farmacêutico, respetivamente, em parceria com vários parceiros institucionais. O objetivo é distinguir ideias inovadoras nas áreas de engenharia química, química, materiais, ambiente e desenvolvimento farmacêutico.

O Prémio SHIC’08, no valor de dez mil euros, foi atribuído ao projeto Produção de um Novo Biopolímero Biodegradável com Aproveitamento do Glicerol, da autoria dos investigadores Maria Reis, Filomena Freitas, Vítor Alves, Rui Oliveira e Filipe Aguiar, do Departamento de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Este projeto destacou-se pela possibilidade de transformar um resíduo do biodiesel, o glicerol, num produto de valor acrescentado, com aplicação possível numa gama alargada de produtos industriais.

Doze mandamentos

Com uma simplicidade brilhante, Paul T. Anastas (da EPA) e John C. Warner (professor na Universidade do Massachusetts) condensaram os conceitos, objetivos e linhas orientadoras da química verde em doze princípios derivados de uma linha básica de orientação que se traduz resumidamente na conceção de produtos e processos ambientalmente benignos (do original benign by design). Embora alguns destes princípios pareçam ser pouco mais do que a aplicação do senso comum aos processos químicos, a verdade é que a sua implementação combinada requer um esforço tremendo no design e no desenvolvimento dos produtos e processos.

Apesar da existência dos doze princípios, não há ainda uma definição concreta e largamente aceite de “síntese verde”. Existe, contudo, uma concordância geral de que ela deve ser alcançada através da aplicação de várias estratégias e tecnologias: reações com elevada economia atómica (maximização da utilização dos reagentes); melhor uso da catálise, incluindo catálise orgânica (catalisadores não-metálicos) e biocatálise (com enzimas ou micro-organismos); meios rea¬cionais alternativos à utilização de solventes orgânicos (água, líquidos iónicos, fluidos supercríticos, solventes fluorados ou mesmo reações na ausência de solvente); novos métodos energeticamente eficientes (irradiação fotoquímica, ultrassons, micro-ondas ou tecnologia de microrreatores); vias sintéticas alternativas que evitem o uso de reagentes tóxicos; redução do número de passos sintéticos.

Da aplicação dos doze princípios da química verde surgiu o conceito mais recente de “síntese ideal”, introduzido por James H. Clark (Universidade de York, Reino Unido). Os princípios direcionam a química sintética industrial e laboratorial no sentido da síntese ideal, focando-a numa matriz que combina fatores de cariz químico, ambiental e económico, com aspetos relacionados com a saúde e a segurança das pessoas, das populações e do meio ambiente.

Mãos na massa

Michael John Smith, catedrático do Departamento de Química da Universidade do Minho, considera que, pelo “aumento da consciência ambiental de todos os cidadãos, a química verde vai assumir um papel mais predominante nos próximos anos”. A verdade é que já há bastantes exemplos da aplicação dos seus tópicos principais.

Tomemos o exemplo da prevenção de resíduos e da economia atómica. A maneira mais eficiente de diminuir o impacto ambiental de uma atividade industrial é desenvolver soluções que previnam a formação de resíduos. A partir do momento em que se investe em tecnologias de produção mais limpas, não há necessidade de aplicar recursos no tratamento de resíduos, que nem sempre resolve satisfatoriamente o problema.

A indústria têxtil é um setor de atividade económica importante para o país. À primeira vista, não associamos grande componente de química industrial às empresas têxteis, mas nas etapas de tinturaria, estamparia e acabamentos, bem como nos serviços auxiliares de tratamento de efluentes e caldeiras, ocorrem reações químicas.

Para Maria José Carvalho, engenheira do Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal (CITEVE) e coordenadora de gestão de processos, “a aplicação do conceito de química verde na indústria têxtil tem claras vantagens de natureza económica, essencialmente porque reduz os custos associados aos consumos de energia, água e produtos, podendo mesmo contribuir para um aumento das vendas, pela melhoria da imagem das empresas e pela abertura a novos mercados, especialmente aos mais sensíveis a este tipo de questões, desde que devidamente divulgadas”.

Segundo aquela responsável do CITEVE, as ferramentas que promovem a aplicação destes princípios à indústria têxtil são “a aplicação de MTD [melhores técnicas disponíveis], a implementação de sistemas de gestão ambiental e a rotulagem ecológica, que deveriam, no entanto, estar mais divulgadas e implementadas”. Alguns exemplos práticos incluem a introdução de métodos enzimáticos para neutralização do peróxido de hidrogénio usado no branqueamento de tecidos, a opção pelo peróxido de hidrogénio em detrimento do hipoclorito de sódio e a utilização de lubrificantes hidrossolúveis e biodegradáveis em vez dos lubrificantes convencionais baseados em óleos minerais.

Por outro lado, no contexto da avaliação de riscos de compostos produzidos ou importados para a União Europeia, surgiu a necessidade de abordagens alternativas ao uso de animais de laboratório. João Aires de Sousa, professor no Departamento de Química da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, investiga o desenvolvimento de métodos computacionais para prever propriedades tóxicas de compostos, a partir da sua fórmula de estrutura.

“Durante o desenvolvimento de novos produtos, podem ser usados modelos computacionais para prever características toxicológicas, para filtrar compostos para os quais sejam previsíveis toxicidades inaceitáveis”, explica o investigador. “Isto pode ser feito para estruturas moleculares existentes em bases de dados mesmo antes de os respetivos compostos serem sintetizados ou existirem na natureza. Aproximações deste tipo permitem também minimizar a experimentação animal, cada vez mais restringida e em alguns casos mesmo proibida, como na Diretiva Europeia sobre testes animais para o desenvolvimento de cosméticos.”

Fim dos solventes orgânicos

Uma reação química é bem mais do que os reagentes envolvidos na formação dos produtos. A maioria dos processos conhecidos requer a utilização de solventes, promotores de reação, catalisadores, auxiliares quirais, agentes secantes, agentes de separação ou soluções aquosas salinas, entre outros. Os solventes orgânicos são muitas vezes tóxicos e a sua reutilização nem sempre é viável. Nos últimos anos, tem-se registado um esforço considerável no sentido de substituir os solventes orgânicos convencionais por outros ambientalmente mais aceitáveis, como é o caso da água e do etanol. Outras alternativas, tecnologicamente mais exigentes, têm também sido investigadas, como é caso dos líquidos iónicos à temperatura ambiente e a utilização de fluidos em condições supercríticas, como o dióxido de carbono e a água, por exemplo.

Um dos grupos de investigação que mais têm contribuído para a produção científica na área dos líquidos iónicos (LI) está sediado no Instituto Superior Técnico. O investigador principal do grupo, Carlos Afonso, catedrático na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, afirma que o interesse dos LI reside nas suas “propriedades peculiares”, que permitem uma gama ampla de aplicações interessantes.

Os LI são líquidos à temperatura ambiente, constituídos apenas por iões. Além de ter sintetizado um vasto número de LI, muitos deles novos, e de ter estudado as suas propriedade físico-químicas, aquele grupo de investigação desenvolveu novas aplicações utilizando-os “como meio reacional, o que permitiu reutilizar o catalisador”, evitando o uso de solventes orgânicos e reduzindo os desperdícios. Outras aplicações desenvolvidas incluem a utilização de LI “na extração de açúcares de soluções aquosas e na remoção de dioxinas do meio ambiente”. Resultante do trabalho efetuado na área dos LI, o grupo de investigação de Carlos Afonso criou em 2004 uma start-up para a comercialização de LI, a Solchemar.

Na mesma direção vai a utilização de fluidos supercríticos, uma tecnologia utilizada pelo grupo de Síntese e Processamento de Polímeros em Dióxido de Carbono Supercrítico, do REQUIMTE. O CO2 supercrítico é obtido a temperaturas superiores a 31 ºC e a uma pressão de 73 atmosferas. Nestas condições, possui um elevado poder solvente e propriedades mistas de gás e líquido. Conforme explica Vasco Bonifácio, investigador do Programa MIT Portugal, Bioengineering Systems, as vantagens desta tecnologia são a baixa toxicidade e o facto de o CO2 ser não inflamável, barato e facilmente reciclável.

Atualmente, este investigador é responsável por um projeto de síntese de polímeros inteligentes, biodegradáveis e biocompatíveis, que incorporam o CO2 na sua estrutura e podem ser usados em aplicações biomédicas. Neste projeto, o CO2 supercrítico é usado simultaneamente como solvente e como rea¬gen¬te. “Estes polímeros designam-se por ‘dendrímeros’ (nome que fica a dever-se à sua estrutura ramificada bem definida) e assemelham-se às proteínas, devido à sua estrutura tridimensional”, explica Vasco Bonifácio. “Os dendrímeros são capazes de encapsular fármacos no seu interior e são polímeros inteligentes porque respondem a determinados estímulos, como por exemplo o pH: libertam os fármacos apenas a pH mais baixo. Deste modo, podem ser usados na terapia do cancro, pois os tecidos tumorais possuem um valor de pH mais baixo do que os tecidos saudáveis.”

Em busca das fontes renováveis

Um dos princípios da química verde alerta para a necessidade de utilizar fontes renováveis de matéria-prima, nomeadamente materiais derivados de plantas e outras fontes biológicas, renováveis ou reciclados. “Para a redução da utilização de matérias-primas derivadas de fontes não renováveis fósseis, torna-se essencial a criação de alternativas renováveis, nomea¬da¬mente a partir da celulose e da lenhina, em virtude de serem materiais naturais renováveis existentes em enormes quantidades”, refere Carlos Afonso. “No contexto de vários blocos sintéticos de origem renovável, como o glicerol, o ácido láctico e o furfural, prevê-se que o 5-hidroximetilfurfural (HMF) seja um dos intermediários químicos mais relevantes em síntese.”

Recentemente, Carlos Afonso e os seus colaboradores publicaram um artigo de revisão na revista Green Chemistry, acerca das propriedades biológicas, da preparação e das aplicações sintéticas do HMF. O trabalho foi destacado pela revista, por ter estado entre os artigos mais vistos no mês de Março de 2011. Segundo Carlos Afonso, o interesse do HMF reside na “sua natureza renovável, pois é obtido a partir da celulose, da sacarose e da frutose por transformação química”. Além disso, “pode também ser usado para a obtenção de um biocombustível alternativo, o dimetilfurano, e de monómeros para a indústria de polímeros”.

Síntese dirigida

Para evitar a formação de derivados, a síntese química deve ser o mais direta possível, evitando etapas desnecessárias. Este princípio é de particular interesse na síntese química de moléculas altamente complexas, como é o caso de muitos dos compostos de interesse farmacêutico, em que frequentemente se recorre a estratégias de proteção e desproteção, afim de evitar a degradação de uma parte da molécula, enquanto se procede a transformações químicas noutra parte da mesma. A utilização de catalisadores destinados a promover reações contribui para minimizar a formação de resíduos. O desenvolvimento recente de catalisadores altamente seletivos e eficientes em transformações complexas contribui para o avanço da química sintética na direção da chamada “síntese ideal”.

Em Portugal, muitos grupos de investigação estão a trabalhar na área do desenvolvimento de novos catalisadores e processos catalíticos, evitando assim o uso de materiais reconhecidamente tóxicos, e procurando, sempre que possível, implementar estratégias de reciclagem e reutilização dos catalisadores. Contudo, quando se observa a realidade nacional e internacional em química sintética, verificamos que a implementação de estratégias de síntese mais diretas e precisas fica aquém do desejado, uma vez que ainda se recorre muito a processos clássicos, bem conhecidos e testados, muitos deles estequiométricos e portanto não catalíticos.

Por isso, existe consenso na comunidade para a necessidade de uma maior aproximação da química sintética à química de processo. Por outro lado, é importante salientar que, da parte dos grupos de investigação que se dedicam ao processo químico, deve haver a preocupação de explorar a reatividade de uma diversidade maior de estruturas moleculares e de extrapolar os métodos para substratos de reconhecido interesse sintético, aumentando o impacto dos processos desenvolvidos e a possibilidade de estes serem incluídos em vias sintéticas com aplicabilidade laboratorial e industrial.

Neste contexto, é interessante encontrar projetos de investigação transversais como aquele em que participa Maria Manuel Marques, investigadora auxiliar do REQUIMTE: “O projeto consiste em utilizar uma estratégia moderna em Portugal para o design racional de novos fármacos, com vista à obtenção de fortes candidatos com atividade antioxidante e anti-inflamatória, procurando elucidar concomitantemente o seu mecanismo de ação”, explica a investigadora: “O projeto teve início em 2008, com a utilização de testes in silico [métodos computacionais] para selecionar compostos com potencial atividade anti-inflamatória. Estes testes permitiram conduzir o projeto de uma forma racional e sustentável, limitando a quantidade de compostos a preparar, bem como as quantidades necessárias para screening e avaliação biológica, que foram muito reduzidas.” Com esta abordagem, otimiza-se o processo de descoberta de novos fármacos.

De entre todos os produtos químicos, os fármacos estão certamente entre os de maior complexidade. A síntese química de muitas das moléculas responsáveis pelo tratamento das doenças que se conhecem encontra-se entre os avanços tecnológicos mais relevantes alcançados pela humanidade. Porém, a química envolvida na síntese de fármacos é, em regra, mais conservadora e recorre a processos ambientalmente menos sustentáveis. Atualmente, no entanto, assiste-se a uma alteração deste paradigma, motivada pela incorporação dos princípios da química verde nas atividades de descoberta e desenvolvimento de novos fármacos, na otimização das vias de síntese e na transposição para a produção industrial.

Uma grande pegada

A maioria das pessoas associa a refinação do petróleo e a química pesada de produção de polímeros, tintas, resinas, fertilizantes e outros com um forte impacto ambiental, gerador de quantidades enormes de resíduos, muitos deles tóxicos. Apesar de ser evidente uma diminuição da qualidade de vida das populações que contactam diretamente com estas indústrias químicas, por via da contaminação do ar, da água e dos solos, a verdade é que, do ponto de vista do impacto ambiental, medido pelo fator E, a quantidade de resíduos e desperdícios na indústria farmacêutica é cerca de cem a mil vezes maior. Significa isto que, por cada quilo de produto farmacêutico, são produzidas 25 a 100 kg (ou mais) de resíduos e desperdícios industriais (na indústria química pesada, a geração de resíduos é consideravelmente menor: um a cinco quilos de resíduos por quilo de composto produzido).

A razão maior que explica o elevado impacto ambiental medido pelo fator E associado à química farmacêutica é o valor comercial das substâncias ativas farmacêuticas (API, active pharmaceutical ingredients). A valoração que é atribuída comercialmente aos API contribui para o estabelecimento de muitos processos altamente ineficientes nas vias sintéticas conducentes à obtenção dos fármacos.

Outras razões que podem ser enumeradas para explicar esse elevado impacto ambiental incluem as propriedades físico-químicas dos API (geralmente sólidos, de elevado ponto de fusão), a sua diminuta estabilidade química sob condições extremas (por exemplo, temperatura e pressão elevadas) e a necessidade de níveis elevados de pureza dos produtos finais para respeitar as exigentes especificações regulamentares.

Cada reação química de uma via sintética conducente à obtenção de um API exige uma grande seletividade química. O produto de rea¬ção deve ser obtido com rendimentos muito elevados (mais de 95%), sem produtos secundários significativos. Muitos fármacos são quirais, o que requer a necessidade de processos estereosseletivos, por exemplo via separação e purificação dos estéreo-isómeros pretendidos ou por introdução de processos químicos que originem seletivamente o composto desejado (com pureza ótica superior a 98%).

Este conjunto de fatores determina que as reações químicas de preparação de API sejam realizadas em condições relativamente suaves, utilizando solventes orgânicos como meio reacional, reagentes frequentemente em quantidades estequiométricas ou supra-estequiométricas, com recurso a reagentes e catalisadores metálicos e a processos de purificação e isolamento por meio de sucessivas lavagens e extrações.

Em alguns casos, a baixa seletividade obtida e a contaminação com reagentes tóxicos (por exemplo, resíduos de catalisadores metálicos) requer a purificação e separação do API por métodos cromatográficos, que, como necessitam de elevadas quantidades de solventes, aumentam muito a geração de resíduos, incrementando decisivamente o fator E.

Verde na farmácia

Visto tudo isto, o conceito de química farmacêutica verde assenta na procura de processos sintéticos benignos, que reduzam o impacto ambiental, mas dentro do contexto de manutenção do padrão de exigência da sociedade moderna. Isto significa ter, rápida e facilmente, medicamentos disponíveis no mercado a um custo menor, mas com elevados padrões de qualidade.

A adoção dos doze princípios da química verde pode proporcionar maior eficiência, com redução do impacto ambiental durante a síntese química farmacêutica. No entanto, embora a maioria dos princípios possa ter uma transposição direta para a química farmacêutica, devido à sua especificidade, alguns não são transponíveis.

Os princípios do desenvolvimento de produtos seguros e do desenvolvimento no sentido da degradação não são aplicáveis. Os fármacos têm uma atividade farmacológica precisa, que muitas vezes passa por serem moléculas altamente tóxicas, como é o caso dos antitumorais citotóxicos. Por outro lado, o seu efeito farmacológico está dependente da integridade molecular dos compostos, o que exige uma forte estabilidade química, com processos de degradação perfeitamente conhecidos e expectáveis (por exemplo, via metabolização pelos sistemas enzimáticos hepáticos).

Quanto ao princípio da utilização de fontes renováveis de matéria-prima, não é de aplicação universal. É claro que, sempre que possível, devem ser incorporados reagentes provenientes de fontes renováveis, em detrimento dos derivados da refinação do petróleo. Embora alguns medicamentos sejam de origem natural e possam ser isolados a partir de plantas ou animais, esta alternativa está quase sempre colocada de parte, devido aos elevados custos de extração e purificação associados à obtenção de reduzidas quantidades das moléculas desejadas. Nestas situações, o mais viável é a opção por processos químicos industriais de síntese ou semissíntese, partindo de um precursor de origem natural com proximidade química.

R.P.

Desperdícios

A enormidade do problema dos resíduos na produção química é facilmente percetível a partir da observação do fator E típico para vários segmentos da indústria, segundo os dados recolhidos por Roger Sheldon (http://www.sheldon.nl). O fator E obtém-se dividindo o peso do produto químico obtido pelo peso de todos os reagentes utilizados no processo de produção.

Refinarias de petróleo: produção de 1 a 100 milhões de toneladas por ano; fator E: 0,1.

Química pesada: produção de 10.000 a 1.000.000 t/ano; fator E: inferior a 5.

Química fina: produção de 100 a 10.000 t/ano; fator E: 5 a 50.

Indústria farmacêutica: produção de 10 a 1000 t/ano; fator E: 25 a 100.

Os 12 princípios

Prevenção de resíduos. Evitar a produção de resíduos e desperdícios é preferível ao seu tratamento após a formação.

Economia atómica. Os métodos sintéticos devem ser desenvolvidos no sentido de maximizar a incorporação de todos os materiais de partida no produto final.

Síntese de produtos menos perigosos. Sempre que possível, a síntese de um produto deve utilizar e originar substâncias de pouca ou nenhuma toxicidade para a saúde humana e o ambiente.

Desenvolvimento de produtos seguros. Os produtos devem ser desenvolvidos no sentido de poderem realizar a função desejada e, simultaneamente, não serem tóxicos.

Solventes e auxiliares químicos mais seguros. O uso de substâncias auxiliares (solventes, agentes de separação, soluções aquosas salinas, etc.) deve ser evitado, sempre que possível. Quando utilizadas, estas substâncias devem ser inócuas e utilizadas na menor quantidade necessária.

Eficiência energética. As necessidades energéticas devem ser consideradas ao nível do seu impacto económico e ambiental, e devem ser minimizadas. Os processos químicos devem ser o menos agressivos possível, e, idealmente, realizados à temperatura e pressão ambiente.

Fontes renováveis de matéria-prima. Sempre que seja técnica e economicamente viável, a utilização de matérias-primas renováveis deve ser escolhida em detrimento de fontes não renováveis.

Evitar a formação de derivados. A derivatização desnecessária (por exemplo, estratégias de proteção e desproteção) deve ser minimizada ou, se possível, evitada, porque estas etapas requerem reagentes adicionais e tendem a aumentar a geração de resíduos.

Catálise. Os reagentes catalíticos (tão seletivos quanto possível) são melhores do que os reagentes estequiométricos, uma vez que são utilizados em quantidades relativamente reduzidas. Sempre que possível, deve promover-se a reciclagem e reutilização dos catalisadores.

Desenvolvimento no sentido da degradação. Os produtos devem ser desenvolvidos de modo a, após exercerem a sua função, se degradarem em produtos inócuos e não persistirem no ambiente.

Prevenção da poluição. É necessário desenvolver metodologias analíticas que viabilizem a monitorização e o controlo dos processos, em tempo real, antes da formação de substâncias nocivas.

Química intrinsecamente segura. As substâncias, bem como o modo como são utilizadas no processo, devem ser escolhidas a fim de minimizar potenciais acidentes, incluindo derrames, explosões e incêndios.

Balanço positivo

Professora associada do Departamento de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Susana Barreiros é também, atualmente, diretora do Centro de Química Fina e Biotecnologia da mesma universidade (CQFB) e membro da direção do REQUIMTE.

Qual o balanço que fazem, nestes dez anos de existência, da junção de massa crítica dos investigadores que compõem o REQUIMTE?

Muito positivo. A química verde requer uma multiplicidade de perspetivas, incorporando as componentes científica, tecnológica e económica. O REQUIMTE não só possui as competências necessárias a uma abordagem multidisciplinar da química como dispõe de massa crítica: mais de 600 investigadores, dos quais mais de metade doutorados, uma circunstância essencial para que as suas atividades tenham impacto. Ao longo dos últimos anos, verificou-se um crescimento da produtividade da investigação, bem como um aumento do número de patentes concedidas e da criação de spin-offs tecnológicos. Cresceu também o número de estudantes de licenciatura e mestrado a trabalhar nos laboratórios do REQUIMTE, no cumprimento de uma das suas missões fundamentais, que é a formação de jovens investigadores em áreas relacionadas com a química sustentável.

Do trabalho de investigação desenvolvido, que exemplos destaca de empresas de base tecnológica (spin-offs) criadas em colaboração com o REQUIMTE?

Entre as spin-offs criadas por ou envolvendo membros do REQUIMTE, contam-se a Ynvisible (http://www.ynvisible.com), recentemente cotada na bolsa de Frankfurt, que tem como objetivo implementar industrialmente a tecnologia de ecrãs eletrocrómicos desenvolvida pela empresa YDreams, e a mediaOmics, que venceu recentemente a final do ISCTE-IUL MIT Portugal Venture Competition na categoria Life Sciences e pretende revolucionar a produção e a performance de meios de cultura celular, com um impacto muito relevante na indústria farmacêutica, entre outras.

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