A Mutação Constitucional
Por: Fernando Lacerda Rocha • 4/10/2018 • Ensaio • 1.823 Palavras (8 Páginas) • 122 Visualizações
Entender o contexto histórico-constitucional alemão em que foi elaborada a teoria da mutação constitucional é essencial para que a mesma possa ser compreendida e aplicada nos dias de hoje, sobretudo para a análise dos seus efeitos, no Brasil, sobre os direitos fundamentais a longo prazo e servir para legitimar redesenhos da relação entre os poderes
As normas do direito possuem caráter essencialmente provisório, pois “as normas jurídicas não têm caráter estável e perpétuo”[1].
No final do século XIX e início do século XX, autores ligados à Escola Alemã de Direito Público passaram a verificar e estudar tal fenômeno, ligando-o ao específico momento pelo qual passava o então unificado Império Alemão. A Constituição do Império Alemão de 1871 gerou uma situação anormal nos Estados Federados[2] (22 Estados monárquicos e 3 cidades livres que mantiveram suas instituições próprias[3]), vez que cada um tinha constituições locais, embora já tivessem sido total ou parcialmente revogados, e pelo fato de a Constituição Alemã não ter todas as instituições fundamentais do Império.
No plano federal, o poder legislativo era dividido em duas casas, uma eleita pelo sufrágio universal (Reichstag) e a outra eleita pela assembleia dos delegados dos Estados (Reichsrat), sendo que o governo imperial era dirigido pelo chanceler nomeado pelo imperador.
Assim, a Professora Ana Victoria Urrutia informa que é no marco histórico da Constituição Imperial Alemã de 1871 que surgem os primeiros trabalhos teóricos sobre a mutação constitucional, levantando como pressupostos de desenvolvimento dessa teoria na Europa: um certo grau de rigidez da Constituição e sua compreensão como instrumento normativo[4].
Paul Laband, criador do conceito de mutação constitucional, iniciou seus estudos ao constatar a forma como se vinham processando as mudanças da Constituição do Império Alemão, sem o acionamento dos mecanismos institucionais de “reforma constitucional”[5].
Laband reconheceu que a ação do Estado pode transformar o texto constitucional vigente sem a necessidade de sua modificação formal, informando três caminhos distintos de alteração constitucional: 1) por meio de leis que regulam elementos centrais do Estado não previstos ou previstos de maneira colateral pela Constituição; 2) leis que modificam elementos centrais do Estado em contradição com o conteúdo da Constituição; 3) usos e costumes dos poderes públicos que modificam elementos centrais do Estado[6].
Assim, perceberam os juristas germânicos que embora as normas constitucionais se mantivessem formalmente inalteradas, as práticas legislativas, administrativas e judiciais direcionavam o estado alemão por caminhos distintos daquele previsto pelo constituinte, tal situação demonstrava que a rigidez da constituição era insuficiente para impedir as alterações fáticas da mesma (Pádua, 2006, p. 16).
Numa versão oposta ao formalismo[7], a versão da mutação de Rudolf Smend (1882-1975) teve por base a relação entre o Direito e a política, tendendo a comprovar a integração entre o Direito e a realidade, introduzindo na teoria constitucional o método científico-espiritual.
Segundo Rudolf Smend, o Estado é uma forma espiritual coletiva, uma unidade de sentido da realidade espiritual. A integração é o processo que espelha o núcleo essencial da dinâmica do Estado. A Constituição é o ordenamento jurídico desta integração, pois, sem regulá-lo de maneira exaustiva, constitui o elemento controlador dos fatos sociais e políticos em constante mutação (SMEND, 1985, p.132).
Para SMEND (1985, p.130), o problema das mutações constitucionais é característico do Direito Constitucional. A mudança pode ocorrer fora do Direito Constitucional, quando decorre de forças reais, que se movem à margem do Direito e pressionam a transformação da própria Constituição. Essas forças reais são capazes de afetar o interior da Constituição, chegando a transformar gradualmente as relações de valor e peso entre as disposições e as instituições constitucionais, devendo ser consideradas fontes extraordinárias do direito constitucional.
Assim, o fenômeno da mutação constitucional é visto como uma incongruência entre a Constituição escrita e a realidade real, ou seja, revela um desacerto entre a norma constitucional e a realidade constitucional.
No Brasil, com a Constituição Federal de 1988 (rígida e escrita), ampliou-se a competência do Supremo Tribunal Federal (STF), sendo que o mesmo já foi provocado a analisar temas que fugiram do estrito texto legal, certificando-se, assim, a aplicação da referida teoria.
Contudo, a utilização da teoria deve vir acompanhada de limites, cujos instrumentos devam ser bem debatidos no seio da sociedade para que não traga insegurança jurídica ou duvidas acerca da discricionariedade das decisões. Como se sabe, a noção de limites é umbilicalmente ligada à ideia de constituição, vez que a própria Constituição traz em seu corpo regras para a sua modificação, limitando a capacidade de reforma, pois tem como escopo principal a proteção do povo (titular do poder).
Uadi Lammêgo Bulos informa que “é impossível estipular critérios exatos para o delineamento dos limites da mutação constitucional”, mas que existem limites, sendo que a:
Única limitação que poderia existir – mas de natureza subjetiva, e, até mesmo, psicológica – seria a consciência do intérprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior.
Nesse contexto, finaliza dizendo que “o limite, nesse caso, estaria por conta da ponderação do intérprete, ao empreender o processo interpretativo que, sem violar os mecanismos de controle da constitucionalidade, adequaria a Lei Máxima à realidade social cambiante”.
No que tange aos direitos fundamentais[8], muitas vezes apresentam expressões normativas muito vagas e abstratas “com somente o núcleo daquilo que deva ser garantido, de modo que não há como precisar, da simples leitura do texto, o alcance de suas expressões: porém possuem papel fundamental no ordenamento jurídico, pois radicam a ideia de justiça social”.
Assim, há necessidade de clareamento no seu alcance, o que muitas vezes se exige uma atividade interpretativa por parte dos aplicadores. Nesse contexto, inexiste “elenco exaustivo de possibilidades de tutela, também não há rol fechado dos riscos para a pessoa humana e os direitos que lhe são inerentes” (SARLET, 2006, p. 98-99). A longo prazo, há uma incerteza sobre como o fenômeno da mutação constitucional afetaria os direitos fundamentais, pois o fenômeno se assenta diante da incongruência entre a realidade constitucional e o texto constitucional, mas há possibilidade de se fazer projeções com os casos já julgados.
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