A Retificação Edital
Por: Lorena de Freitas • 9/7/2021 • Exam • 8.513 Palavras (35 Páginas) • 101 Visualizações
Presidiário no Brasil:
o animal, o alien e o príncipe
Inmate in Brazil:
the animal, the alien and the prince
Resumo: O presente artigo tem caráter teórico-crítico e ensaístico, situando-se interdisciplinarmente no âmbito da filosofia, mais precisamente no espaço da ética e política, e teoria dos direitos humanos. Através de pesquisa bibliográfica qualitativa, com inserção de elementos literários, o estudo investiga a relação que a sociedade trava com a pessoa que se encontra privada de liberdade cumprindo pena. Abordando o tema a partir de três eixos diferentes, a dimensão animal, a dimensão alien e dimensão humana, verifica-se que a cidadania do preso foi eclipsada pelo encarceramento em massa e pela sua desumanização. Por isso, objetiva-se intervir contra o imaginário social do encarcerado como simples elemento de perigo, ressaltando-lhe a humanidade, cidadania e circunstância de pessoa imersa no trânsito da duração. O trabalho se funda principalmente em elementos da ética de Emmanuel Levinas, com importantes contribuições de Bergson, Judith Butler, Rafael Godoi, Carl Schmitt, Bethânia Assy e Achille Mbembe, além de metáforas de Antoine de Saint-Exupéry.
Palavras-chave: preso; desumanização; ética da alteridade.
Abstract: The present text has a theoretical-critical and essayistic character, placing itself interdisciplinarily within the scope of philosophy, more precisely in ethics and politics, and the human rights theory. Through qualitative bibliographic research, with insertion of literary elements, the study investigates the relationship that society has with the person who is serving a liberty deprivation. The work approaches the theme from the animal, alien and human dimension, concluding that the prisoner's citizenship was obscured by mass incarceration and dehumanization. Therefore, it aims to intervene against the prisoner social imaginary as a simple element of danger, emphasizing his humanity, citizenship and circumstance of a person immersed in the transit of existence. The text is based mainly on Emmanuel Levinas ethics, with important contributions by Bergson, Judith Butler, Rafael Godoi, Carl Schmitt, Bethânia Assy, Achille Mbembe, as well as metaphors by Antoine de Saint-Exupéry.
Keywords: inmate; dehumanization; ethics of alterity.
Introdução
Vale esclarecer logo inicialmente alguns termos do debate para evitar mal-entendidos. O que quero dizer com a dimensão da animalidade e dimensão alien do preso no Brasil? A situação da população carcerária brasileira representa um déficit democrático contra a efetividade dos princípios garantidos na Constituição da República de 1988, sobretudo a dignidade da pessoa humana e a igualdade de todos perante a lei. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2021, referentes ao período de janeiro a junho de 2020, o número de brasileiros sob custódia nas unidades prisionais chegou à marca de 702.069 pessoas. Destas custodiadas e custodiados, 209.257 cidadãos estão presos provisoriamente, ou seja, encontram-se privados de liberdade antes que o processo penal tenha ocorrido com contraditório entre as versões das partes e direito à ampla defesa do acusado até a sentença final.
O Brasil é o país com a terceira maior população carcerária do mundo de acordo com o World Prison Brief, instituto sediado na Universidade de Londres, que reúne estatísticas de encarceramento de diversas nações. Além disso, estamos prendendo cada vez mais, basta olhar para nossa taxa de aprisionamento que se chega à mesma conclusão. O índice mede a quantidade de pessoas presas a cada grupo de 100.000 habitantes. Ainda de acordo com o já citado Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, esta taxa era de 61 em 1999 e, após um crescimento espantoso, atingiu 359,4 em 2019, último ano com dados consolidados. A taxa aumentou impressionantes 589,2%. A população privada de liberdade era de 232.775 no ano 2000 e foi catapultada a 755.274 em 2019.
A despeito das estatísticas mais do que problemáticas, a despeito também de evidências alertando que presídios superlotados geram engajamento em organizações criminosas; boa parte da sociedade brasileira clama pelo recrudescimento da força policial. Muitos bradam que direitos humanos deveriam proteger apenas “humanos direitos”, defendendo que deveres constitucionais atrapalham a segurança pública por garantir ao réu ampla defesa e presunção de inocência. Por que não conseguimos romper este círculo vicioso e adotar medidas que, ao mesmo tempo, representem uma resposta efetiva à infração penal cometida, reduza a violência e respeite os direitos humanos?
Parto aqui do pressuposto de que existe um “troço” que nos impede de acessar à humanidade da pessoa presa. Afinal, somos todos passíveis de transgredir a norma penal em algum momento da vida e, igualmente, somos vulneráveis ao dano físico, à dor psicológica e ao desamparo. O senso comum não ignora isso, embora insista na diferenciação entre “nós” e “eles” em relação ao crime, estagnando em um circuito de repetições intermináveis que pretende diminuir a violência com ações que resultam no sentido exatamente oposto (armamento da população, mais prisão, combate às drogas). Podemos entender esse “troço” como esquemas de inteligibilidade produzindo normas do que, em determinado contexto, pode ser enquadrado como uma vida em sentido pleno, vida cidadã, merecedora de proteção e consideração. Argumento que desenvolvo melhor este no primeiro tópico do trabalho.
No entanto, as estatísticas do encarceramento, as condições pavorosas nos presídios, os programas policiais na tv e até a fala das pessoas nas ruas indicam que, para boa parte dos brasileiros, a vida do preso não tem tanta profundidade, para muitos deles nem valeria a pena que se discutisse este assunto, porque os encarcerados deveriam ser banidos para sempre da sociedade. Os mais sádicos exigem requintes de crueldade nessa operação de apagamento. Enfim, os presos são vistos como menos do que cidadão e, logo, teriam uma vida menos importante do que a do “cidadão de bem”. Esse a menos na vida e na cidadania do preso, estou chamando aqui de dimensão da animalidade, ou da bestialidade.
Por mais admiração e afeto que tenhamos pelos bichos, tradicionalmente estabelecemos para com eles relações de conhecimento e dominação, mergulhando-os no campo da ontologia predatória. Estudamos detalhadamente o comportamento dos animais que afetam mais de perto a espécie humana a fim de compreender ações instintivas e condicionadas. Nunca esperamos que o animal possa espontaneamente mudar seu modo de agir, por ser desprovido do momento da reflexão. Qualquer mudança fica atrelada diretamente a fatores externos a ele.
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