Competência nas ações coletivas
Por: Leonardo Nicoletti • 13/8/2018 • Trabalho acadêmico • 4.575 Palavras (19 Páginas) • 145 Visualizações
PARTE 1
1 INTRODUÇÃO
A defesa dos interesses/direitos transindividuais ou metaindividuais1 , com a chegada – verdadeira necessidade – do Estado democrático de Direito, ganhou foros de cidadania. Atualmente, portanto, é fecunda a doutrina pátria, bem como a resposta firme e, na maioria das vezes, acertada da jurisprudência na defesa de interesses que, há bem pouco tempo, era impensável no Direito brasileiro. Com o surgimento de novos interesses/direitos, fizeram-se mister outras formas de proteção, sendo incumbência da ciência processual adequar os institutos do Direito processual clássico – inspirado ainda em princípios e institutos surgidos no século XVIII – à defesa desses direitos coletivos. Para tanto, foram editadas algumas leis, ao longo dos anos, que previram a defesa de alguns direitos coletivos lato sensu. Porém, é de se colocar em evidência o advento das Leis ns. 7.347/85 – que instituiu a ação civil pública – e 8.078/90 – que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, o qual, de seu turno, além dos aspectos materiais, deu maior desenvolvimento à defesa dos interesses coletivos em sentido amplo. Não obstante a inegável importância que esses diplomas legais possuem hoje no cenário jurídico nacional – como verdadeiras concretizações do Estado democrático de Direito no aspecto processual –, muita celeuma foi criada durante os anos das respectivas aplicações, mormente no tocante ao redimensionamento de velhos institutos processuais que tiveram de ser readaptados à nova realidade das demandas coletivas em razão, obviamente, da natureza dos novos interesses/direitos perseguidos no bojo da relação jurídicoprocessual. Dentre as muitas divergências que ainda suscitam os textos legislativos mencionados, a competência para apreciação e julgamento das demandas propostas pelo rito processual instituído no capítulo II do título III do CDC, entendemos, merece melhor reflexão, seja da doutrina, seja da jurisprudência. Nesse sentido, pretende-se a análise da competência instituída para as chamadas “ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos” que, apesar da dicção legal, possui semelhanças com aquela tratada na Lei n. 7.347/85, mormente após o advento da Medida Provisória n. 2.180.
2 AÇÃO CIVIL PÚBLICA E AÇÃO COLETIVA
Sem embargo da ocorrência de semelhança quanto à competência, as ações sob comento – civil pública e coletiva – possuem particularidades que as distinguem, o que, por corolário, ensejará diverso tratamento interpretativo. Consoante melhor doutrina, a denominação dada às ações é reminiscência do período imanentista da teoria do processo em que, para cada direito existe uma ação específica (legis actiones)2 . Apesar do acerto da afirmação, os procedimentos são criados ante a necessidade de concretização dos direitos materiais, daí o aparecimento de diversos ritos processuais especiais que instrumentalizam a efetivação dos direitos de fundo; afinal, processo é meio de realização material da função jurisdicional do Estado. Isso ocorre com o procedimento previsto no capítulo II do Título III do CDC (do art. 91 até o art. 100), que prevê as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos. Ao contrário do que consta na Lei de Ação Civil Pública (LACP) – art. 3º –, a ação coletiva prevista no CDC tem por objeto imediato do pedido tãosomente a condenação do réu – única providência jurisdicional admitida nesta seara – ao pagamento de quantia – objeto mediato, que deverá ser apurada em seu quantum no respectivo processo de liquidação (arts. 91 e 95 do CDC). O âmbito de abrangência da primeira (ACP) é maior que o da segunda, no momento em que aquela serve como instrumento à satisfação não só de condenação a determinada quantia, porém e ainda, à condenação referente a obrigações de fazer ou não fazer. Mesmo que perfunctoriamente, só por esse ponto, vislumbram-se, de forma completa, diferenças intrínsecas entre uma e outra, que dão ensejo a tratamento diverso, no particular. Ademais, somente após o advento do Código de Defesa do Consumidor, a ação civil pública tornouse instrumento eficaz, também, à defesa dos interesses individuais homogêneos, o que, antes do Código consumerista, consistia clara impossibilidade jurídica da demanda (art. 21, LACP, posteriormente alterado pelo art. 117 do CDC). Por outro lado, parece ser entendimento sedimentado na doutrina o fato de que a ação coletiva somente poderá servir de instrumento à defesa de interesses consumeristas, ao passo que a ACP constitui meio de defesa de qualquer interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo3 . A condenação em ação civil pública ou coletiva por lesão ao consumidor só poderá ter como objeto o dano global e diretamente considerado (p. ex., o dano decorrente da aquisição em si do produto defeituoso ou impróprio para os fins a que se destina, ou sua substituição ou a respectiva indenização). A tutela coletiva não poderá alcançar danos individuais diferenciados e variáveis caso a caso, de indivíduo para indivíduo (p. ex., danos emergentes e lucros cessantes) 4 . À guisa de ilustração, as diferenças comentadas ensejam diferenças ontológicas entre as ações em cotejo, o que, no concernente à competência do juízo, traduzir-se-á em ponto de aproximação, desde que se dê interpretação consentânea aos seus objetivos.
PARTE 2
3 COMPETÊNCIA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Consoante dispõe o art. 2º da LACP, as ações civis públicas serão propostas no foro onde ocorrer ou deva ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional, portanto, absoluta, para o conhecimento e julgamento da demanda. Já em seu parágrafo único – introduzido pela MP n. 2.180 –, dispõe a lei que a propositura da ação prevenirá a jurisdição (rectius: competência) do juízo para as demandas idênticas5 . Da assertiva pode-se inferir que o juízo competente para o conhecimento e julgamento das ações civis públicas será definido não pelos elementos subjetivos da demanda – domicílio do autor ou do réu –, mas por seu elemento objetivo, qual seja, o fattispecie que ensejou o surgimento do objeto litigioso: o dano. Assim, os objetivos da norma jurídica, ao determinar a competência do juízo do local do dano, são claros: a prevalência da importância da res iudicium deducta sobre as partes em lide; a facilidade na colheita de provas. Explica-se o primeiro porque, nos processos coletivos cogita-se, em regra, de interesses que não dizem respeito ao indivíduo, como ser atomizado6 , mas ao membro de uma sociedade, cujos interesses – interesses sociais – em um Estado democrático de Direito sobrepujam os meramente individuais. Por outro lado, a definição do local do dano como determinante da competência do juízo tem por fim, sob o aspecto prático, a facilitação da colheita de provas, visto que o juiz estará mais perto – e por conseqüência terá maior facilidade na sua captação e entendimento – dos indícios oriundos da probabilidade da ocorrência do dano e dos vestígios deixados pelo dano efetivamente causado, provenientes da conduta delitiva7 . Com a introdução do parágrafo único ao art. 2º pela MP n. 2.180, se os efeitos do dano (potencial ou efetivo) transbordarem dos limites de uma comarca, ou até mesmo de um Estado-membro, competente será – nas ações civis públicas, repise-se – aquele juízo onde ocorrer a primeira citação válida, segundo as regras insertas no Código de Processo Civil sobre prevenção (art. 219). Entretanto, ao lançar escólios sobre a matéria, afirma Hugo Nigro Mazzilli: se os danos se estenderem a mais de um foro mas não chegarem a ter caráter estadual ou nacional, o inquérito civil deverá ser instaurado e a ação civil pública proposta seguindo os critérios da prevenção; se os danos se estenderem ao território estadual, ou nacional, o inquérito civil deverá ser instaurado e a ação civil pública proposta na respectiva capital 8 . Pedindo a devida vênia ao ilustrado mestre, pensamos que tal raciocínio não possui supedâneo legal. Com efeito, na lei (LACP) não há norma jurídica que franqueie tal entendimento. Isso porque, mormente após a inserção do parágrafo único ao art. 2º da Lei n. 7.347/85, é explícita a determinação da competência pela prevenção – que deverá subsidiar-se nas normas processuais gerais previstas no CPC sobre tal instituto – entre as comarcas envolvidas no evento danoso. Ademais, não existe texto legal expresso que determine a competência de outro juízo – que não o prevento – em casos de dano cujo âmbito seja regional ou nacional (nem mesmo há previsão de dano de âmbito regional ou nacional), acolhendo a assertiva do jurista paulistano, ao contrário do que ocorre com o CDC, em seu art. 93, no qual resta clara a determinação legal da competência do foro da capital do estado ou do Distrito Federal em casos de dano cujo âmbito seja regional ou nacional, respectivamente, o que, demonstrar-seá, não pode ser interpretado, também, de forma estritamente literal. Em se tratando de ação civil pública, em hipótese alguma, não importando a dimensão dos efeitos do dano, será competente o foro da capital do estado ou o Distrito Federal, e sim, como dito, o juízo, dentre as comarcas envolvidas, que primeiro realizar citação válida, simplesmente por não existir norma jurídica que de forma diversa o preveja, e, ao revés, haver comando legal que assim o determine. Por exemplo, em dano ambiental envolvendo os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, competente será o juízo da comarca que primeiro realizou a citação válida para o conhecimento e julgamento da ação civil pública eventualmente proposta, independentemente do estado a que pertença tal comarca, não havendo falar em competência da comarca da capital de uma das entidades federadas, caso não esteja envolvida pelos efeitos do dano. E, mesmo assim, esta somente será sede do juízo competente se citação válida ali houver sido realizada antes de se ter efetuado em qualquer outro, o que a tornará preventa. Não é apropriada a argumentação segundo a qual a norma aplicável à espécie seria o CDC; primeiro porque o disposto no art. 93 do codex consumerista somente poderá ser aplicado em se tratando de relações jurídicas materiais de consumo; segundo porque na LACP há norma, como visto, que trata expressamente da competência nessas ações, não sendo lícito argumentar, portanto, com o art. 21 da mesma LACP, haja vista que a incidência deste somente ocorrerá no que for cabível. Em se tratando de relações jurídicas de consumo cujo objeto imediato do pedido seja a condenação ao pagamento de determinada quantia, será aplicável o CDC, mais especificamente o seu art. 93, no que concerne à competência, em razão do princípio da especialidade, afastando-se a incidência da Lei de Ação Civil Pública. Como o Código de Defesa do Consumidor é lei posterior e especial no cotejo com a norma que instituiu a ação civil pública, pensamos que aquela derrogou esta no que diz respeito à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos nas relações jurídicas de consumo. Isso porquanto, segundo os ditames do parágrafo 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), lei posterior – acrescentamos, de mesma ou superior hierarquia – derrogará anterior quando regular inteiramente a matéria de que tratava esta. A inaplicabilidade da LACP somente ocorrerá quando se pleitear a condenação do réu ao pagamento de determinada quantia. A contrario sensu, quando o pedido imediato da demanda for a condenação em obrigação de fazer ou não fazer, será perfeitamente viável a utilização da ação civil pública, consoante determina o art. 83 do CDC. Assim, em se tratando de relação jurídica material de consumo, aplicável sempre o CDC, devidamente subsidiado pela LACP e pelo CPC – nessa ordem – naquilo em que for omisso. Dessa forma, inapropriada a utilização da ação civil pública quando se tratar de violação de direito consumerista, ressalvado o alegado supra. Tal raciocínio ficará mais patente no que diz respeito à competência, pois, não há na LACP, ao contrário do que ocorre no CDC, determinação da competência em razão do âmbito alcançado pelos efeitos do dano. Em suma, forçoso admitir que, em se cuidando de ação civil pública, nos casos de concorrência entre dois ou mais juízos, a competência será determinada pela prevenção em quaisquer casos, não havendo cogitar da amplitude dos efeitos do dano perpetrado.
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