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PROPEDÊUTICA HABERMASIANA AO DIREITO

Por:   •  8/8/2019  •  Bibliografia  •  8.038 Palavras (33 Páginas)  •  119 Visualizações

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PROPEDÊUTICA HABERMASIANA AO DIREITO

Prof. José Pedro Luchi

A obra “Facticidade e Validade. Contribuições para a teoria discursiva do Direito e do Estado democrático de Direito” [1], de 1992, é vista como uma resposta de esquerda à questão do sentido da postura socialista depois da queda do socialismo real[2]. Habermas, na introdução a esse livro, define o socialismo hoje como: “conjunto das condições necessárias para formas de vida emancipadas, sobre as quais os participantes mesmos precisam primeiro se entender” (FG,12)[3]. Que a evolução social seja capitaneada por visões do direito cada vez mais democráticas, cuja implementação permite inclusive uma maior complexidade econômica, já era uma visão anterior de Habermas[4]. Porém só mais tarde ele escreveu um livro mais detalhado que inclui uma Filosofia do Direito. O propósito do presente estudo é bem delimitado: numa primeira parte abrirei algumas perspectivas sob as quais Habermas vê o Direito no quadro de uma teoria comunicativa da Sociedade. Em seguida passo à compreensão habermasiana da teoria do Direito, que se situa entre a Sociologia do Direito e uma Teoria da Justiça. Finalmente reporto algumas críticas à teoria discursiva do direito, fazendo também algumas observações.

  1. Visões do Direito

  1. O Direito como lugar de uma interna conexão entre Facticidade e Validade.

O Direito natural racional afirmara a competência constritiva dos sujeitos privados para se defender contra intervenções indevidas no seu âmbito de liberdade. O Direito positivo reafirmará essa faculdade dos sujeitos, que agora se concretiza como competência de apresentar queixa seja contra outros sujeitos que lhe invadem o espaço de liberdade seja contra o próprio Estado. Porque agora o Estado monopoliza os meios de constrição legítima.

O modelo peculiar da validade racional do Direito conecta coerção e liberdade. O Direito implica desde a origem uma competência para coagir, competência que porém não se justifica por si mesma apenas, mas deve ser legitimada. Kant legitima a coerção como “impedimento do impedimento à liberdade”[5]. Então a coerção é internamente vinculada à defesa da liberdade. Fica liberada aos sujeitos a motivação para a observância da lei: eles podem fazê-lo meramente pela legalidade, isto é, para conformar seu comportamento à letra da lei e assim não sofrerem sanções, ou podem observar a lei com motivação moral, pelo dever. Porém as regras jurídicas devem poder ser observadas por causa de sua validade racional, devem merecer o respeito do ponto de vista moral, devem portanto ser legítimas, o que não é de modo nenhum contraditório com sua força coercitiva. Normas jurídicas, são, portanto, ao mesmo tempo, sob aspectos diversos, leis de coerção e leis de liberdade (FG, 47). Tal impostação de Habermas explode o reducionismo do positivismo jurídico de Hans Kelsen[6], por ex., que apaga a questão da validade normativa do direito, enfocando apenas se a lei foi formalmente colocada de modo correto, isto é, pela autoridade competente e coerentemente. A questão da justiça é aí cindida da legalidade jurídica.

Podemos comentar o duplo aspecto da validade jurídica do ponto de vista da Teoria da Ação. O primeiro aspecto é a validade social ou fática da norma jurídica, que indica o grau de sua imposição e aceitação efetiva pelos consociados jurídicos. Aqui é preciso diferenciar a validade convencional de usos e costumes amadurecidos espontaneamente com a tradição e a validade fática artificialmente produzida do direito positivo, baseado em ameaças e sanções reclamáveis perante um tribunal. Desse primeiro aspecto se distingue aquele da legitimidade da norma jurídica, medida pela aceitabilidade racional das pretensões de validade que tal norma levanta; o primeiro critério para isso é o procedimento racional do processo legislativo de onde as normas surgiram. A legitimidade de uma norma jurídica não depende de ela ser faticamente observada, mas, inversamente sua observância efetiva varia com a fé na sua legitimidade. Quanto menos legitimada uma norma ou um conjunto de normas, mais sua observância dependerá de intimidação, poder das circunstâncias, costume ou mero hábito.

Conforme a essa dupla possibilidade da validade do Direito, o ator pode, diante da norma jurídica, tomar uma dupla posição. Ele pode considerá-lo, empiricamente, como um fato do mundo que limita seu espaço de ação e, calculados os efeitos da observância e da infração da norma, agir voltado para o sucesso, de modo objetivizante. Pode também agir voltado para o entendimento com outros atores, considerando a reciprocidade de expectativas de comportamento que a norma concretiza, isto é, sua vinculatividade deontológica. Mas a validade jurídica requer que seja ao menos sugerida aos atores que eles possam observar as normas “por respeito à lei”, isto é, que elas possam ser obedecidas por sua legitimidade. Dessa análise do duplo aspecto da validade jurídica decorre como consequência que “o Direito positivo precisa ser legítimo” (FG, 49).

Facticidade e Validade do processo de legislação. Uma ordem jurídica legítima deve garantir para cada um as mesmas liberdades; leis morais preenchem por si essa condição mas leis jurídicas precisam ser assim estabelecidas pelo legislador político. “O processo legislativo forma então no sistema do Direito o lugar próprio da integração social” (FG, 50). Isso significa que os legisladores não podem (dürfen, em alemão) agir na posição estratégica de sujeitos privados que buscam seu próprio sucesso, mas precisam assumir a posição de agentes voltados para o entendimento, isto é, de cidadãos autônomos, cujas sentenças devem poder ser aceitas por todos os participantes. Assim, no conceito de Direito já está instalado o princípio democrático de que a sua legitimidade só pode ser assegurada pela aceitabilidade de suas regras por parte de todos os cidadãos livres e iguais, o que tem uma força altamente sócio-integrativa.

Aqui a tensão entre Facticidade e Validade se coloca do ponto de vista da deliberação do legislador, a qual é uma entre muitas alternativas e que pode ser inclusive modificada. No nível da legislação não se pode portanto permanecer nas liberdades privadas subjetivas, na liberdade de arbítrio, mas é preciso passar para o nível da liberdade cívica (staatsbürgerliche), então da autonomia. Porque a positividade do Direito não é fruto de uma vontade empírica e contingente, mas de uma vontade autônoma, pela qual cidadãos livres se dão a si mesmos sua lei e se reconhecem nela. Aceitando-a como legítima aceitam-na como se eles a tivessem dado a si mesmos. Só assim o direito pode conservar uma força sócio-integrativa. A fonte da solidariedade que o direito moderno possibilita se radica ultimamente num consenso de fundo, característico do agir voltado para o entendimento. Tal liberdade comunicativa não pode ser completamente substituída pela constrição jurídica, embora ela socialmente se encarna nas instituições, de muitos modos. Logo, o sistema do Direito subjetivo privado, que garante proteção e ação constritiva contra interferências indevidas em relação às liberdades individuais, não se basta a si mesmo. Tal sistema não pode simplesmente se reproduzir por si mesmo, mas sua reprodução ou atualização depende de um consenso dos cidadãos, consenso que preenche então a lacuna de solidariedade deixada pela mera legalidade.

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