Um Sonho Possível
Por: Mariana Acácio • 20/3/2019 • Trabalho acadêmico • 2.030 Palavras (9 Páginas) • 288 Visualizações
Um Sonho Possível (2009) foi dirigido por John Lee Hancock e protagonizado por Quinton Aaron (atuando como Michael Oher) e Sandra Bullock (atuando como Leigh Anne Tuohy), retratando a história real do jogador de futebol americano Michael Jerome Oher, que atualmente atua como offensive tackle na National Football League. Mesmo toda a história se passando em território dos Estados Unidos da América, que possui Lei diversa em relação à colocação em família substituta, a análise será realizada com base no código brasileiro.
Michael começa a ser retratado no filme como um adolescente introvertido, de idade incerta e com poucos ou nenhum registro. Isso não se difere do observado na realidade brasileira, onde a maioria das crianças e adolescentes que chegam à tutela estatal não possuem histórico familiar e pessoal: são registros precários e muitas vezes inexistentes. Pela prática em acolhimento institucional, muitos dos adolescentes chegam nas instituições portanto somente a requisição de abrigo preenchida pelo Conselho Tutelar, muita vezes com informações dadas oralmente por adolescentes que não querem ser registrados no sistema. Temos então, adolescentes sem nenhum histórico que não existiram para o Estado até surgir a trágica necessidade de serem tutelados.
O fluxo da rede de proteção tem início com medidas auxiliares e de apoio, e tem como seu ponto máximo o acolhimento institucional (Moreira et al, 2013, p.60-61), tanto que este último se encontra na Proteção Social Especial, na Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). As medidas anteriores ao acolhimento visam garantir a plena convivência familiar e participação ativa da comunidade na construção da proteção do indivíduo, mas todo esse processo tem sido ignorado com a inversão do fluxo, que ocorre quando a porta de entrada da proteção se torna o acolhimento institucional, que é a medida mais grave. No filme, observamos - ressaltando novamente a análise com base na Lei brasileira, que Leigh Anne Tuohy não seguiu o fluxo previsto. Ao invés de encaminhar o adolescente em situação de risco social ao Conselho Tutelar, para ser feito contato com a família e possíveis encaminhamentos para o Centro de Referência de Assistência Social - CRAS ou o Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS, ou, excepcionalmente, acolhimento institucional de urgência, ela o levou para sua residência e assim permaneceu até surgir a necessidade de se tornar guardiã legal.
Ao longo do filme, Michael é informado da morte de seu suposto pai, encontra um irmão com quem não possuía contato há anos (sobre os outros 11 irmãos não se tem informações) e procura sua mãe, que é dependente química, em diversos momentos, inclusive quando ainda era criança e evadia de instituições para ir a seu encontro. Ou seja, Michael possui uma família que poderia ser assistida a nível social. A convivência familiar prevista em Lei não é cumprida muitas vezes pela ausência de informação, como dito anteriormente. A defasagem da informação garante um descuido estatal, uma vez que "descuidar da história singular das crianças, dos adolescentes e de suas famílias incluídos na rede de proteção é desconhecer seus afetos, seus modos próprios de significar e enfrentar o sofrimento cotidiano” (Moreira et al, 2013, p.67), criando assim sujeitos desumanizados, no sentido de serem privados da sua subjetividade e muitas vezes de suas famílias. Se um ser humano sem registro não é um cidadão, uma criança e adolescente sem história é um objeto do Estado, que vai preencher essa lacuna com mais institucionalização, com retornos a ambientes familiares tóxicos, com a adoção equivocada (p.70-71) e principalmente com crianças e adolescentes invisibilizados. Foi exatamente pela falta de registro e documentação pessoal que Michael solicita à Leigh Anne a legalização de sua situação.
“O marco teórico que sustenta a doutrina da proteção integral pressupõe que, só por meio das políticas públicas democráticas, de um investimento nas redes de ancoragem do sujeito, pode-se transformar o quadro social de abandono e desamparo infantil.” (Ayres, 2010, p. 50). No entanto, percebemos, ainda hoje, na prática cotidiana das Varas da Infância e da Juventude, as marcas da exclusão moral das famílias pobres e um incentivo à adoção.
Por adoção, entende-se o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente da biologia ou da genética, o vínculo de filiação, (Ayres, 2010, p. 48), desligando-o de qualquer vínculo com pais biológicos, o que não ocorreu no filme nem na história real. Infere-se, por já ter ocorrido o processo de destituição familiar aos 7 anos de idade e pelo fato de que atualmente encontram-se no registro de Michael Jerome Oher também os nomes de seus pais biológicos, que Michael foi colocado em família substituta por meio de tutela legal. Se o caso fosse de adoção, os requerentes, segundo a Lei nº 12.010/2009, art. 197-C, §1, deveriam passar obrigatoriamente por "programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção interracial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos". Esse processo de habilitação para adoção, que compreende muito mais etapas, não ocorreu, pois como observado em uma das cenas, uma autoridade informa a Leigh Anne que Michael está sob tutela do Estado e que ela apenas precisa pedir a um juiz a guarda e este acatar.
Apesar de a família acolhedora não ter tido o acompanhamento de uma equipe técnica multidisciplinar, o acolhimento se deu em função do melhor interesse do adolescente, tendo em vista a proteção dos direitos de Michael. No entanto, nem sempre é essa a realidade das relações entre as famílias substitutas e a criança/adolescente. Ainda hoje se vêem situações em que o processo de inserção da criança em uma nova família é bastante dificultoso e por vezes, até distorcido. Preconceitos, fantasias e a ideia de utilitarismo, infelizmente ainda são questões que rondam esse cenário. Segundo relatos de técnicos da área, se observa em algumas ocasiões, “uma concepção da adoção na qual a criança não se constitui no foco da atenção, priorizando-se as necessidades dos adultos envolvidos na cena” (Silva & Arpini, 2012, p,56). No caso de Michael, houve, em determinado momento, a suspeita de que o acolhimento do adolescente teria girado em torno de interesses pessoais da família substituta. Esse ideário também abre precedentes para interpretações diversas e equivocadas
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