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O Crime, Castigo e Gratidão

Por:   •  3/12/2017  •  Artigo  •  956 Palavras (4 Páginas)  •  263 Visualizações

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Crime, castigo, gratidão

Meus irmãos mais velhos ganharam um violão de minha mãe e tomaram a decisão unilateral de guardá-lo em cima do guarda-roupa, fora do alcance das crianças. Só eles podiam usar o lindo instrumento, cujo som me fascinava. Portanto, muito me interessava pôr as mãos naquele brinquedo, sabia que seria divertido. Aquela retaliação infundada encontraria resistência, foi o que prometi a mim. Na periferia das reuniões de gente grande com música ao vivo, lá estava eu, à espreita. Abandonava qualquer brincadeira, atraído pelo som daquelas cordas que os irmãos tocavam até cansar, e observava indiscretamente. Via os acordes acontecerem e os memorizava. Depois, sozinho em casa, executava com grande dificuldade o delito de empréstimo não autorizado, algo parecido com furto. A embalagem de papelão que guardava o precioso objeto descia deslizando perigosamente por meus braços e tronco, eu me equilibrando na cadeira trêmula sobre uma caixa de madeira. Quando soltava o produto do roubo sobre a cama logo abaixo, gelava de medo que ele caísse no chão. Nunca caiu, graças à fé cravada a olhos fechados em minhas orações. Era difícil, também, a ocasião que faz o ladrão, pois naquele nicho de prioridades adultas, criança tinha que esperar a infância passar para realizar simples desejos. De tudo aquilo, o mais fácil era tirar o som, cantar as canções. Era tamanha a convicção de licitude na atitude, que nem mesmo as aulas de catecismo, com seu santo viés inquisidor, incutiam-me culpa. Pelo contrário, eu era feliz tocando violão e cantando, além de jamais ter acreditado na legitimidade dos castigos, tão comuns por lá e para mim. Mesmo à socapa, os estudos tornaram-se cada vez mais intensos. O tempo desaparecia e dei para ficar apertado com a hora de devolver o violão ao altar. Acabei preso em flagrante. Sucumbi julgado sumariamente e condenado a safanões e descomposturas as mais desonrosas – não era para menos, o privilégio adulto fora vilipendiado por um guri! Proibiram-me tudo, mas era tarde para proibirem o tocar, pois eu já estava tocando. Curti por muitos dias a solidão dos condenados, até que o mais surpreso e menos carrancudo dos manos reconheceu minha coragem e vocação. Foi ele quem me deu as primeiras aulas, além de autorizar, todo-poderoso, o livre acesso ao instrumento. Só posso agradecer a ambos os irmãos - pelas aulas de um e pelas autorias de outro, esse de cá  o primeiro compositor que eu vi existir assim, na minha frente. Com ele descobri que se podia fazer música, e não apenas interpretar as que já existiam. “Vingança musical” seria o título do próximo capítulo da saga do moleque enxerido que eu era, pois passei de vilão escorraçado a convidado especial nas reuniões de gente grande. Certa vez, encantada ao ver-me dedilhar clássica modinha, uma moça bonita demais, amiga dos irmãos, comoveu-se e me deu um beijo, acariciando-me a  face imberbe enquanto  recitava uma ode improvisada de sublimes elogios. Luz na treva, devo à música essa singela alegria de menino. Alguns anos depois eu me matricularia no Conservatório de Música de Brasília. Lá, tornei-me discípulo e companheiro de farra do virtuoso e inesquecível mestre Jerusalém. Mais tarde, abandonei o conservatório e abracei o professor pelas madrugadas de minha juventude: desaprendemos cânones e aprendemos vida, muito e juntos. Morreu bêbado, como sempre estava, no dia em que apagou com o cigarro aceso sobre um colchão que virou fumaça. Como eu não fumava, só vivia o perigo das brigas de rua, de bar, de casa e dos comas alcoólicos - e eles foram dois. Os pileques, homéricos e aos milhares. Escapei com vida e com os dilermandos e villalobos que o mestre ensinou. Três vivas para Zalém, meu amado professor! Com ele tive certeza sobre o que eu queria ser, se sobrevivesse àquela adolescência agitada. A travessia foi perigosa, mas consegui afirmar o músico, cantor e compositor que escreve aqui. Sempre por minha conta e risco fui ao mundo, com shows e discos estrada dentro.  Entre as muitas opções que a vida me deu, somente esta não pude recusar: a arte. Não que não houvesse tentado dela abster-me, tentei sim, e mais de uma vez. Mas, longe dela, sentia tanta falta que nada podia me bastar, chegando ao cúmulo da mais completa insatisfação com tudo e com todos, a começar por mim mesmo. Obriguei-me a ser artista, já que sempre houve algo tentando obrigar-me a outra coisa. Minha modesta existência sempre dependeu e sempre dependerá disso. Certas coisas são escolhas - outras, condição. Apesar do talento, talvez até mais de um, reconheci finalmente que meus maiores desafios residem na impossibilidade de aceitação ante a seiva pragmática da vida moderna ou no aspecto mais medíocre da cultura, sempre a sugerir-me ou obediência ou resignação. Obrigado, mas não, e preferi aceitar aquilo que ela não me ofereceu. Ou tentaram incurtir-me que não oferecia. Claro que pagarei o preço até o fim - pois assim tem sido - dessa humilde posição: um artista. Hoje sei que só existe caminho ao caminhar-se. É com esse estandarte que desfilo na avenida de minhas alegorias - ou alegações. Não é pelo reconhecimento quase somente doméstico conquistado e ainda menos pelos parcos proventos dessa vida mambembe que tornei-me, tanto o artista quanto o homem, alguém que sinceramente agradece. Agradeço aos mestres,  aos amigos e aos que nem tanto assim, às proibições que me levaram à insurreição, à solidão que acompanha o decidido, aos dias que sucederam tanta noite eterna. Ao Universo, esse conspirador do bem. Agradeço aos obstáculos - humanos ou desumanos, não importa: gratidão! Por todos os riscos, por todos os medos e sustos, tudo que houve, valeu a pena. Todas e todas as penas, pois elas se transformaram em alegria, amém. cp

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