Nascimento e morte do cuidado de si
Por: guillhermee • 24/3/2016 • Resenha • 2.340 Palavras (10 Páginas) • 600 Visualizações
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- Surgimento e “morte” do cuidado de si[a]
A expressão “cuidado de si” remete às expressões (epimeléia heatoû) e (cura sui), grega e latina respectivamente. Foucault vai até essa época para estudar o que ele chama de “fenômeno cultural de conjunto”. Este fenômeno que tem uma “dimensão determinada” e surge num “momento decisivo” é chamado por Foucault como “época de ouro do cuidado de si”. Nesta época e local, estavam disseminadas na cultura, as “práticas de si”. Estas práticas criam uma forma do sujeito – termo que não existia na época – relacionar-se consigo mesmo para um possível acesso à verdade. Na época do fim do helenismo, era tido comumente em várias escolas filosóficas que era necessário todo um trabalho de “lapidação” na subjetividade para que a verdade seja alcançada. Nós não somos capazes de atingir a verdade de antemão, não nascemos prontos para tal feito e poucos chegaram a tal posição, porque é um trabalho para ser feito durante “a vida toda” e onde o objetivo não é nada mais do que a realização pessoal de autoconstituir-se de tal forma que isso dê uma satisfação de ter agido para a askésis.
Foucault se debruça principalmente sobre o epicurismo e o estoicismo. No entanto, através de sua análise genealógica, o filósofo encontra o surgimento da noção do “cuidado de si” um pouco antes, no “momento socrático-platônico”.
Ainda influenciado por Nietzsche em seu método de análise, Foucault reflete sobre o que pode ser chamado de “morte” filosófica do “cuidado”.
“Ela é diagnosticada em dois âmbitos: primeiramente numa espécie de esmaecimento moral do próprio conceito e depois na consolidação epistemológica de seu desaparecimento, chama por Foucault de ‘momento cartesiano’”. (Salma Tannus, p. 45)
O “momento cartesiano” é configurado pela sobreposição do “conhecimento de si” (gnôthi seautón) ao “cuidado de si”. O conselho de conduta “conhece-te a ti mesmo” inscrito no templo délfico é, de acordo com Foucault, “atrelado”, “acoplado” ao princípio do “cuida de ti mesmo”.
“Na verdade, não se trata totalmente de um acoplamento. Em alguns textos, [...], é bem mais uma espécie de subordinação relativamente ao preceito do cuidado de si que se formula a regra ‘conhece-te a ti mesmo’. O gnôthi seautón aparece, de maneira bastante clara e, mais uma vez, em alguns textos significativos, no quadro mais geral da epimeléia heautoû, como uma das formas, uma das consequências, uma espécie de aplicação concreta, precisa e particular, da regra geral: é preciso que te ocupes contigo mesmo. É nesse âmbito, como que no limite desse cuidado, que aparece e se formula a regra ‘conhece-te a ti mesmo’” (HS, p.6)
O texto que abre esse caminho duplo é o texto que por um longo tempo foi o primeiro de todos nas escolas filosóficas helenísticas e romanas: Alcebíades.
“Em Sócrates, o ‘cuidado de si’ remete a uma função a ele confiada pelos deuses; designa-lhe uma posição, que é a do mestre a quem cumpre ensinar os concidadãos a cuidar de si; determina-lhe um papel, que é o daquele que desperta e inquieta. Após Sócrates, o ‘cuidado de si’ remete a uma atitude geral que diz respeito a um modo de pensar e de conduzir-se; designa uma atenção ou conversão do olhar vinculada ao sentido de meditar e exercitar-se; determina ações cujo efeito é purificador e transformador”. (Salma, p.47)
O texto de Platão abre uma bifurcação no destino histórico da filosofia. Duas linhagens de pensamento e de concepção do papel da filosofia surgem: a filosofia como pensamento e ética de vida e a filosofia como conhecimento representativo. Esta última, ganhará uma forte base na “ambiência cartesiana”. Mas esta primazia do “conhecimento de si” só foi possível pela fragilização do “cuidado de si”.
Foucault não é um filósofo que está preocupado com uma explicação total, final, completa. Por isso, ele levanta “hipóteses, com muitos pontos de interrogação e reticências”[1].
Estas hipóteses podem ser separadas em dois blocos. O primeiro trata de descrever os “paradoxos” em torno da noção de “cuidade de si” no âmbito moral e o segundo, “concerne ao problema da verdade e da história da verdade”[2].
A “nebulosa de vocabulário e expressões”: “ocupar-se consigo mesmo”, “ter cuidados consigo”, “retirar-se em si mesmo”, “recolher-se em si”, “sentir prazer em si mesmo”, “buscar deleite somente em si”, “permanecer em companhia de si mesmo”, “ser amigo de si mesmo”, “estar em si mesmo como numa fortaleza”, “cuidar-se” ou “prestar culto a si mesmo”, “respeitar-se”, etc[3] parece ter um valor negativo – visto do nosso ponto de vista – porque parece remeter a um caráter egoísta, individualista do sujeito. A moral cristã que é parte da nossa tradição rejeita o egoísmo e isso nos dissuade de enxergar essa noção com valor positivo, de acentuar uma moral social e coletiva.
No entanto, as práticas do “cuidado de si” foram incorporadas tanto na moral cristã como na moral moderna não cristã. Porém, foram devidamente aclimatadas.
“Essas regras austeras, cuja estrutura de código permaneceu idêntica, foram por nós reaclimatadas, transpostas, transferidas para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do não egoísmo, seja sob a forma ‘moderna’ de uma obrigação para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria, etc. Portanto, todos esses temas, todos esses códigos do rigor moral, nascidos que foram no interior daquela paisagem fortemente marcada pela obrigação de ocupar-se consigo mesmo, vieram a ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo moderno numa moral do não egoísmo”. (HS, p.14)
Contudo, Foucault acredita “haver uma razão bem mais essencial que esses paradoxos da “história da moral”[4] que é o que ele chamou – mesmo reconhecendo ser uma expressão ruim – de “momento cartesiano”.
Se no Alcibíades, Platão ao abrir a bifurcação para a interpretação do papel da filosofia, parece dar primazia ao “conhecimento de si” através de Sócrates, ele faz “uma espécie de ‘sobreposição dinâmica’ das duas noções, um ‘apelo recíproco’ a articulá-las, de modo que nenhum dos dois elementos deve ser negligenciado em proveito do outro”[5].
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