O evangelho e suas condições de possibilidade:afinidades econômicas e culturais do neopentecostalismo no contexto da globalização
Por: cansadadetudo • 13/6/2021 • Trabalho acadêmico • 6.486 Palavras (26 Páginas) • 158 Visualizações
O evangelho e suas condições de possibilidade:afinidades econômicas e culturais do neopentecostalismo no contexto da globalização
Na América Latina, o processo de globalização se desenvolve em correspondência com uma série de mudanças na rede religiosa. Uma dessas mudanças está relacionada ao crescimento constante dos grupos evangélicos neopentecostais. Nesse contexto, surge a pergunta sobre as razões exógenas e endógenas que colocam esta denominação protestante no centro da renovação espiritual de nosso tempo. O conceito de afinidade eletiva nos permitirá explorar o conjunto de correspondências que se estabelecem entre o Evangelho e duas grandes forças ligadas à globalização: a doutrina neoliberal e o pós-modernismo. A primeira parte do artigo discute a estrutura de interpelação do discurso religioso sobre o sofrimento social. A segunda parte analisa a incorporação de códigos culturais de consumo e produção de bens na indústria cultural evangélica. Por fim, o artigo pretende captar a intensidade de ambas as relações, distinguindo diferentes graus de afinidade eletiva entre elas.
Questão sociológica da globalização –por suas origens, dinâmica e abrangência– requer a ruptura com dois tipos de obstáculos epistemológicos que, embora pareçam à primeira vista signos opostos, mantêm a mesma relação com o que nomeiam. O primeiro refere-se às noções de senso comum, especialmente de mídia na natureza, que tendem a construir cadeias de sentido em que a globalização sempre se refere ao romance, ao inexplicável, à presença de forças externas que afetam as biografias de diferentes maneiras. Individual. A esse obstáculo que associa o termo ao imediatismo da novidade, opõe-se um segundo problema ou viés que envolve os modelos explicativos dos discursos teóricos e certos resquícios da filosofia da história -presente,Algranti, 2012 , p. 89–96). A globalização surge, neste segundo caso, como uma fase necessária, uma nova conquista, dentro dos processos históricos e institucionais que ocorrem entre a primeira e a segunda modernidade. A premissa subjacente às apreciações do senso comum e da astúcia do pensamento abstrato é que ambos contribuem - a partir de diferentes estruturas temporais - para o desenvolvimento de uma mitologia tácita do fenômeno, ou seja, fortalecem o discurso legitimador das relações sociais, transmutando as formas de dominação histórica e arbitrária na ordem natural das coisas.
O ponto cego dessas concepções, tanto em suas versões acadêmicas quanto populares, reside na negação de três aspectos fundamentais relacionados à sociologia crítica: nos referimos a 1) a questão genética sobre as origens históricas de todos os processos sociais, 2) a transferência a violência que as mudanças nos diferenciais de poder e nas relações de dominação acarretam e, por fim, 3) as necessidades econômicas, muitas vezes sobrepostas, dos atuais padrões de acumulação. Essas omissões tendem a se expressar sintomaticamente nos excessos ou extremos de um modelo de organização social. Portanto, um dos desafios da sociologia é construir seu objeto de estudo na contramão das verdades evidentes da sociedade e das fronteiras traçadas pelo pensamento estabelecido de uma época.
Podemos tentar responder a essas demandas epistemológicas trabalhando no problema da globalização a partir de fenômenos sociais relativamente adiados. Desta forma, propomos analisar, por meio de ensaio e tomando como referência implícita o caso das megaigrejas de Buenos Aires, 1 as condições de possibilidade e desenvolvimento do “Evangelho” em um estágio inicial. Usamos o termo Evangelho como um significante vazio ( Laclau, 2005, p. 91–97) capaz de expressar a unidade do universo protestante na Argentina. Essa noção é colonizada por uma denominação específica, o neopentecostalismo, que tem conseguido aderir a essa palavra com a história os significados e as formas rituais, estéticas e técnicas de um ramo específico da tradição protestante.
Em consonância com pesquisas recentes ( Parker, 2002 ; Mariz e Machado, 2005 ; Comaroff, 2009 ; Burity, 2013 ), nossa hipótese de trabalho é a existência de um tipo de relação que poderíamos chamar de afinidade eletiva entre o movimento neopentecostal e duas grandes configurações socioculturais vinculadas à globalização: a doutrina econômica do neoliberalismo, especialmente no que se refere às suas repercussões na sociedade, e a lógica da produção cultural do capitalismo tardio a que Frederic Jameson (1998 ; 2009) se identifica com o nome de pós-modernismo. O grau de intensidade a que alude esta forma complexa de causalidade reconhece diferentes registros que vão desde o mero “parentesco espiritual” ( Löwy, 2007 , p. 102; Howe, 1978 ), até a criação de uma figura completamente nova a partir de a fusão de elementos relacionados.
Para discernir aproximadamente a força dessa relação, o artigo é dividido em duas partes. O primeiro reconstrói a estrutura de interpelação do Evangelho diante das diferentes expressões de sofrimento social que a reestruturação econômica produz direta ou indiretamente, explorando os pontos de contato que emergem entre as imagens neopentecostais e o neoliberalismo. A segunda parte analisa a incorporação seletiva dos códigos culturais, dos enunciados, típicos do consumo, do entretenimento e da mercadoria na difusão do Evangelho. Finalmente, nas conclusões, o artigo tenta especificar o tipo específico de afinidade eletiva que se estabelece entre as formações religiosas e econômicas.
O significado espiritual do fracasso social
Em seu sentido mais amplo, o termo globalização é utilizado para expressar uma ideia latente de mudança e, poderíamos dizer também, de totalidade . A ideia de mudança emerge diante das comparações com a sociedade industrial e seus esquemas institucionais. Essa imagem surge como um modelo social em crise que serve ao propósito de estabelecer continuidades e rupturas com a realidade atual. Em outro registro, a ideia de totalidade aponta
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