Ensaio sobre os conflitos de tradição em Terra Sonâmbula, de Mia Couto.
Por: Thiagolms • 23/8/2017 • Ensaio • 1.417 Palavras (6 Páginas) • 1.010 Visualizações
Terra Sonâmbula foi o primeiro romance escrito por Mia Couto, lançado em 1992, ano em que o acordo de paz foi assinado em Moçambique. O livro traz os momentos de agonia vividos pela população moçambicana durante a guerra civil. Duas historias paralelas são narradas nesta obra, temos a historia de Muidinga e do velho Tuahir, que saem de um campo de refugiados em busca de dias melhores, encontram um machimbombo incendiado e lá fazem acampamento, encontram neste local os cadernos de Kindzu personagem central da historia paralela, rapaz que deixa sua casa para perseguir seu desejo de se tornar um guerreiro naparama e lutar pela paz.
Em Terra Sonâmbula encontramos uma escrita envolvente, carregada com passagens da tradição de algumas etnias moçambicanas, ao passo que estas entram em conflito com as mudanças perpetuadas pelo pós-independência e pela guerra civil. Na tradição os mais velhos cumprem o papel de “guias de toda a comunidade” (Krakowska, 2013, pg. 4), esclarecendo sonhos, explicando acontecimentos ou ainda transmitindo conhecimentos do saber popular como podemos perceber neste trecho: “Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos” (Couto, 2007, pg. 16), o corpo social africano tinha uma visão ampla sobre:
“a saúde, envolvendo o bem estar na vida cotidiana, o sucesso em sua propriedade rural ou em seu trabalho, qualquer fosse ele, a saúde das crianças, a sua felicidade na escolha de um parceiro para a vida, e assim, sucessivamente.” (Tshibangu, 2010, pg. 610)
Toda a sociedade tradicional girava em torno da religião, os males físicos representam um problema de saúde cuja causa pode vir de uma força negativa resultado de uma má relação com pessoas que o cercam, ancestrais ou divindades, o mesmo poderia acontecer em outras áreas do cotidiano. Em Terra Sonâmbula a vila de Kindzu simboliza todo o tradicionalismo africano e o momento de transição vivido no pós-independência. Temos como exemplo Taímo pai de Kindzu, que costumava ter sonhos premonitórios e sempre reunia toda a família para contar-lhes estas visões, no entanto com a mudança ocorrida nos tempos de guerra, as respostas dadas por esses guias já não possuem mais utilidade, e o próprio Kindzu percebe que os anciãos já não podem lhe ajudar:
“Aquele grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não eram sábios mas crianças desorientadas. Mais que ninguém, eles sofriam a visão da terra em agonia. Cada casa destruída tombava em ruínas dentro de seus corações. As mãos do professor sangravam dentro do peito dos mais velhos. Aquela guerra não se parecia com nenhuma outra que tinham ouvido falar. Aquela desordem não tinha nenhuma comparação, nem com as antigas lutas em que se roubavam escravos para serem vendidos na costa.” (Couto, 2007, pg. 30)
Muitos podem entender esta passagem como fim da tradição enquanto elemento de construção de vivencias, para Kamila Krakowska “esta interpretação Superficial de uma cena isolada apenas retomaria o pressuposto eurocêntrico de que a tradição é intrinsecamente imutável.” (2013, pg.4). No entanto a tradição africana não é estática, assim como toda a vivencia desses povos, temos como exemplo a associação a outras religiões como é dito por Kofi Asare Opoku:
“Outros, ao contrário, aceitavam-na com base naquilo que já sabiam, compreendendo o cristianismo a partir dos conceitos fundamentais da religião africana tradicional, de modo a associar a mensagem de Cristo às suas profundas necessidades religiosas.” (Opoku, 2010, pg. 618).
Taímo e Tuahir são os personagens dentro da obra que ilustram estas transformações acontecidas dentro da tradição. Tuahir está sempre traçando seu próprio caminho, nas aventuras vividas por ele e Muidinga, ao se afastarem do machimbombo ele está sempre transmitindo lições sobre a tradição adaptando-as quando necessário a realidade vivida naquele momento, ao masturbar o garoto Muidinga o velho cria um tipo de “rito” de iniciação, transformando-o em homem, originalmente estes ritos se iniciam com danças e musicas e terminam com a retirada do prepúcio dos jovens para que o seu sangue ao tocar o solo se misture com o sangue dos antepassados.
Taímo traz consigo uma grande complexidade, a priori a personagem aparenta ser um defensor da tradição, aquele que não permitirá a partida de Kindzu, para que o mesmo cumpra seu dever e lhe faça diariamente as cerimonias. É quando:
“O velho Taímo se explicou: eu não podia alcançar nada do sonhado enquanto a sombra dele me pesasse. A mesma coisa se passava com a nossa terra, em divórcio com os antepassados. Eu e a terra sofríamos de igual castigo.” (Couto, 2007, pg. 45).
Neste sentido “as palavras do velho são, de facto, um chamamento para repensar o papel e o lugar da tradição na construção das nações africanas pós-coloniais.” (Krakowska, 2013, pg. 5). Aqui vemos que a confusão que aflige Kindzu e toda a terra, é na verdade um sofrimento de quem esta prestes a “definir as suas origens, os seus laços de pertença, a sua história.” (Krakowska, 2013, pg. 5). Segundo Krakowska, o período de pós-independência foi marcado por esse drama de consciência, o programa nacionalista feito pela FRELIMO, influencia a forma como a tradição é vista em Moçambique. Se por um lado as elites buscavam no passado referências para uma identificação nacional, por outro havia o temor dos vários povos que formam Moçambique se identifiquem apenas com as suas próprias comunidades, o que causaria conflitos. O programa politico da FRELIMO claramente influenciado pelo programa da URSS
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