As Crônicas de Recife
Por: Sophie Valentina • 9/11/2017 • Trabalho acadêmico • 1.971 Palavras (8 Páginas) • 293 Visualizações
Crônicas da Estrada[1]
Laura Katherine Saturnino[2]
Não era a primeira vez. Era como se tivesse crescido com um pé aqui e o outro lá.
A fronteira entre o Piauí e o Pernambuco (Marcolândia) me fascinara desde pequena, com o cheiro forte das plantações de mandioca ao qual não conseguia me acostumar. Marcolândia, a última cidade do Piauí antes do Pernambuco, e parada obrigatória para tomar o café do velho tio Sebastian. O aroma de café impregnava por toda parte dando uma fascinante sensação de acolhimento, o gosto era tão agradável que só poderia ter sido feito com uma pesada carga de amor. Automaticamente recarregava a minha vontade de viver. Durante todos esses anos, a estrada que me leva aos braços da minha família, e todas as cidades as quais tenho uma parada obrigatória para visitar parentes e amigos tem sido minha casa, meu refúgio. A voz da Sandra Pesavento sempre ecoa na minha mente, ela que sempre sabe todas as cidades possíveis na minha imaginação e consegue enxergar uma até no gosto amargo do meu café.
Depois da breve despedida do Tio Sebastian, segui a viagem, energia recarregada e pronta para a próxima parada em Garanhuns, cidade considerada uma das mais frias da região nordeste a qual tenho muito apreço. Da janela do carro, Walter Benjamim e eu observávamos sempre atentos aos detalhes mais simples que provavelmente passavam despercebidos. Do lado de fora, a menina mais velha dava tapas em um menino, e do lado de dentro me desesperava para que ela parasse. Ela não parou, não enquanto meus olhos puderam segui-los, então, Michel de Certeau que até aquele momento havia ficado em silêncio, segurou minhas mãos e disse que os observadores não podem interferir no curso dos pedestres, me entristeci com suas palavras, encostei no banco e fechei os olhos a imaginar um mundo diferente.
Já era noite quando chegamos a Garanhuns, era mais uma parada para abastecer a alma. Tantos estão a me esperar para compartilhar amor, os mais sinceros sorrisos em agradecimento a minha escolha de parar ali. Dessa vez não por estar fugindo, não para mais um funeral. Observo que a antiga ponte permanece intacta, uma estrutura estranha e atualmente desnecessária, penso em como algo que da forma e do lugar onde fora construído pode ter sido útil um dia, e tento me apropriar do que Marc Augé conceitua como” lugar” e “não lugar”. Mas não chego a nenhuma conclusão, não conheço o bastante da história daquela ponte, não posso dizer se houve realização total em algum momento, só sei que ela nunca foi apagada fisicamente. As casas são simples e tão alinhadas que sempre me perco por suas ruas. Estranhamente, o cemitério dos Ferreira Jorge e Saturnino sempre fora meu ponto de referência para encontrar qualquer lugar que desejasse, assim como foi o que quase sempre me levou à aquela cidade, uma das dimensões da cidade de Raquel Rolnik.
Eram cerca de três horas da manhã quando saí da casa onde estava hospedada para encontrar um amigo. Depois de andar em círculos por um bom tempo, vi o cemitério e consegui encontrar a casa a qual procurava. Quando lá cheguei, pude notar que as portas ainda estavam trancadas, me recusei a gritar, pois sabia que seria inútil. O frio era intenso e meu casaco estava atrás daquela porta, não sabia quanto tempo meu pulmão suportaria até estar em crise. Não levou muito tempo. Olhei para o muro da casa e pensei em ser o sujeito ordinário de Michel de Certeau, não era tão alto, e talvez eu conseguisse. Um barulho, a porta abre e um homem com traços indígenas sorri e me diz para entrar, um sorriso exagerado ecoa da cozinha. A voz me chama de filha e me abraça, mais uma vez o aroma de café e chocolate tomam conta de mim.
Vou até o quarto à procura do meu amigo que ainda está adormecido, tropeço no vídeo game esquecido no chão, ele acorda, sorri e esconde o rosto como que pedindo desculpas pelo atraso. Me entrega um casaco azul bem maior que o meu número e retornamos à cozinha. Sentamos a mesa para o café da manhã com os pais do meu amigo Guilherme, e de súbito recordamos que não temos tempo. Pegamos uma mochila e colocamos uma garrafinha térmica com cappuccino, algumas fatias de bolo embrulhadas em papel toalha, alguns pães de queijo e uma toalha de mesa. A meta é ver o nascer do sol em um morro muito bonito que fica há cerca de uma hora de lá, subimos na moto e prosseguimos viagem. Chegamos ao mais próximo que se consegue ir de moto, a deixamos na estrada e seguimos a pé até chegar aos degraus de pedra natural que levam até o topo.
A subida é um tanto longa, mas ao chegarmos ao topo a visão é fantasticamente agradável e panorâmica. Certeau e Benjamin ficariam encantados com tamanha beleza. Talvez um pouco decepcionados por não existirem multidões para observar, ou nem se quer uma casinha simples de porta e janela com uma pequena família. O lugar traz uma ambígua sensação de liberdade e solidão, e as vezes essa é uma sensação tão necessária para pensar em todas as outras cidades que me vem à mente, as cidades dentro de outras que são percebidas e sentidas de maneiras diferentes por cada um como acredita Ítalo Calvino.
Observo toda a imensidão bem da ponta do penhasco, enquanto o meu amigo Guilherme se mantém afastado, ambos silenciosos e perdidos em seus próprios pensamentos. As nuvens parecem tão próximas como em uma das minhas músicas favoritas Alice e il blu de Annalisa Scarrone, na qual ela pede um grama de nuvem, ou um pedaço do azul e alguém se dispõe a ir buscar. Queria eu conseguir alcançar um pedaço daquele céu azul para guardar na minha caixinha das memórias, mas há outras músicas que descrevem tudo que o lugar me traz, todas as perguntas e respostas para entender as fragilidades de nossas vidas, e não importa o que aconteça, sei que duas músicas expõem perfeitamente os meus pensamentos no topo daquele lugar chamado de Morro dos ventos uivantes em homenagem ao livro de Emily Bronte. Imagine se si potesse non morire de Modá, e Esseri Umani de Marco Mengoni são as músicas que delineiam meus pensamentos mais confusos, as referências para a vida que jaz adiante e parte da trilha sonora das minhas viagens. “ Imagine se pudéssemos ver as estrelas com o sol? ”
O que posso dizer é que há muito mais história depois do retorno do morro dos ventos uivantes, volto a estrada e continuo em busca de um refúgio repleto de memórias. A última parada é a cidade de Recife, tão bela em aparência e tão podre em seu passado colonial. Uma cidade que segundo Sylvia Couceiro possui duas faces, uma deslumbrante e outra miserável, e tenho que concordar com ela, pois, reza a lenda que só se conhece uma cidade a partir do seu lado pobre e miserável, onde reina a afetividade e as histórias de lutas. Na entrada da cidade de Recife o céu é estranhamente mais bonito, as nuvens parecem flutuar logo acima de nossas cabeças, não há como olhar para outro lugar que não seja o céu. A ponte da entrada da cidade que à muitos traz a sensação de medo, me traz a um turbilhão de boas sensações e dentre elas a de liberdade. Era noite quando cheguei ao centro da cidade, não encontrei hotéis com quartos vagos próximo ao centro, a única saída era dormir em um Motel, não fiz dramas ou recusas, simplesmente fui e acabei por dormir em um Motel chamado de Turquesa localizado na Avenida Canxangá. Tomei um banho e adormeci.
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