FAMÍLIA ÀS AVESSAS: EXPERIÊNCIAS, VALORES E MEMÓRIAS PARTILHADAS NO PROCESSO DA LIBERDADE (JUAZEIRO-BA, 1835-1863)
Por: keziarsc • 6/5/2022 • Artigo • 6.311 Palavras (26 Páginas) • 117 Visualizações
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – CAMPUS PETROLINA
ESPECIALIZAÇÃO EM ENSINO DE HISTÓRIA
FAMÍLIA ÀS AVESSAS: EXPERIÊNCIAS, VALORES E MEMÓRIAS PARTILHADAS NO PROCESSO DA LIBERDADE (JUAZEIRO-BA, 1835-1863)
KEZIA COSTA SILVA RIBEIRO[1]
RESUMO
A escravidão não se reduz, apenas, a uma instituição histórica ou um modo de produção, mas evidencia-se na condição de relacionamento entre seres humanos numa perspectiva estruturalista. Ao estudar sobre a escravização, a condição da escravidão e a manumissão como parte de um mesmo processo, este trabalho destaca que o exercício da liberdade mediante a alforria é reflexo de solidariedades construídas no cotidiano do escravo em cativeiro. Visto que a alforria não era uma aventura solitária e que o seu processo era resultado de cooperações, de ajuda mútua, a família cativa, dessa maneira, caracterizaria um campo aberto de possibilidades, um terreno onde interpretações conflitantes de regras gerais de direitos tinham importantes significados políticos que, em paralelo com atuações do dia a dia, compunham um cenário de intensas mobilizações.
Além de discutir a natureza de família escrava, - matrifocal, nuclear, extensa, - este trabalho analisa a escravidão e a liberdade em Juazeiro oitocentista no intuito de analisar uma possibilidade de identificação de variáveis capazes de dar significado à composição familiar cativa da região e de destacar a sua importância no processo da manumissão.
Palavras-chave: Escravidão. Família. Liberdade.
INTRODUÇÃO
A história da família escrava no oitocentos tem encontrado um segmento de pesquisa no qual a função de sua legitimidade e estruturação era a de resistir à lógica social da escravidão. A possibilidade de formação de família e o tratamento dado às relações parentais de escravos revelam-se a partir da importância e do potencial de autonomia que são dados à constituição de arranjos familiares.
O tema sobre a escravidão, família e liberdade é resultado de estudos realizados ainda na graduação com as cartas de liberdade contidas nos Livros de Notas Públicas do 1º cartório de Juazeiro-BA e disponibilizadas no Laboratório de História da UPE, Campus Petrolina. O interesse no questionamento desses elementos que ajudam a problematizar o cenário da escravidão e da liberdade na região do Vale do São Francisco ganha força, entre outros aspectos, pelo fato de introduzir a região na historiografia brasileira sobre o assunto.
Intercalando o que a historiografia nos diz acerca de família cativa, seus arranjos e estruturações, com casos específicos de Juazeiro da Bahia encontrados em cartas de alforrias, afim de destacar a existência de redes de solidariedades tecidas mediante as experiências, os valores e memórias partilhadas por meio da reelaboração de práticas de mentalidades africanas, este trabalho vincula o regional com uma visão conjunta, sobretudo, no que se refere à matrifocalidade.
O estudo sobre a família escrava tem trilhado nas últimas décadas do novecentos caminhos que tem beneficiado o entendimento de suas representações enquanto modelo socialmente formado. A compreensão que temos hoje sobre essa família é resultado de observações que se fundamentaram em discussões a respeito das vivências da vida familiar cativa.
O objetivo deste trabalho é destacar a formação de famílias escravas, enfatizando, sobretudo, as famílias matrifocais, no intuito de analisar como as possíveis experiências e valores anteriores à escravidão influenciaram na composição de diversos arranjos familiares e, mais ainda, observar como as memórias partilhadas agiam na conduta dessa família em cativeiro.
O presente ensaio dá continuidade ao estudo de uma temática que há muito se tem estudado, - a matéria da família escrava no tempo da escravidão -, mas que ainda carece de muita análise, especialmente quando se tratado da nossa região.
Juazeiro - BA foi uma cidade expressivamente escravista e como tal a fundamentação de seus mecanismos se estruturou em torno de um complexo no qual a figura do preto escravizado e a prática de suas vivências davam a ela um novo formato. Desse modo, entendendo que a dinâmica da escravidão se configurava com base nessas vivências adquiridas pelo escravizado antes e durante sua vida em cativeiro, delimitamos nosso estudo ao tentar observar como a formação da família escrava se fazia valer no universo da liberdade.
Apesar de existirem expressivos estudos a respeito da família escrava em plantéis escravistas, a exemplo do estudo de Robert Slenes (1999) entre outros, a análise deste trabalho deter-se-á em observar como essa instituição social se organizou e quais os significados de resistência, expressos por ela, no limiar de sua formação.
As observações a partir da discussão sobre a concepção da família escrava evidenciam uma visão a respeito de sua constituição, que revela uma instituição forte, com figuras indispensáveis ao seu funcionamento, capaz, especialmente, de constituir laços afetivos.
Nessa perspectiva, a família escrava atuou como legítima oportunidade de defesa em relação aos infortúnios do cativeiro e, enquanto dispositivo social, viabilizou estratégias de superação para as dificuldades enfrentadas no dia a dia da escravidão, além de conferir a seus membros possibilidades de estruturação no plano da liberdade.
FAMÍLIA ÀS AVESSAS
A família escrava caracterizara um campo aberto de possibilidades, um terreno onde interpretações conflitantes de regras gerais de direitos tinham importantes significados políticos que em paralelo com atuações do dia a dia, compunham um cenário de intensas mobilizações. (SLENES, 1999, p. 49)
Não é intenção desta análise constatar a importância da existência da família escrava, nem tampouco reafirmá-la enquanto categoria social. Vários estudiosos tentam, agora, ir além na interpretação dos dados empíricos, questionando-se sobre seus mecanismos de viabilização, em que a observação de costumes, o parentesco e a linhagem aparecem como objetos privilegiados. (CHALHOUB, 2010, p. 5). Nosso objetivo, desse modo, é observar vestígios de possível formação da família cativa e como ela atuou no processo de aquisição da liberdade de seus membros. Quais as implicações dos novos estudos sobre a família cativa no processo de formação de redes de solidariedades? De acordo com a historiadora Kátia Mattoso (2003, p. 123-124)
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