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Manifestações culturais populares no Brasil dos primeiros anos da República aos anos 1930

Por:   •  21/12/2020  •  Resenha  •  11.105 Palavras (45 Páginas)  •  231 Visualizações

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21/12/20

APRESENTAÇÃO DE SEMINÁRIO DA PÓS

10. O POVO NA RUA: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS COMO EXPRESSÃO DE CIDADANIA

Rachel Soihet*

No mês de junho de 1993, o sr. Cláudio Bernardo da Costa, nascido em 1905 no subúrbio de Cascadura, um dos fundadores da famosa Escola de Samba Portela, relembra seus anos de juventude. 1 De início ele reforça sua ascendência africana, pois o pai teria vindo daquele continente. Em outro momento, fala do irmão “que gostava muito de futebol, [...] era muito audacioso; se fosse hoje, quem sabe seria um profissional ganhando bem” e que o teria encaminhado para a prática desse esporte. Nele, iniciara-se como gandula 2 do Modesto, clube do qual passou para o Aliança de Quintino. Um de seus companheiros de jogo, o Valdemar Bombeiro, sugeriu-lhe a ida a Osvaldo Cruz, pois pretendia apresentá-lo a um “sujeito [...] lá da Portela, muito educado, muito fino”, o Paulo da Portela, o maior responsável pela formação dessa escola de samba. Desde então, passou a frequentar sistematicamente as reuniões naquele local.

As festas ali eram frequentes, quer na casa do seu Napoleão, pai de outro fundador da Portela, o Natal da Portela, quer na casa de dona Ester, frequentada por Pixinguinha, Donga e João da Baiana. Tais festas compreendiam também o candomblé, já que seu Napoleão e dona Ester eram, respectivamente, pai de santo e mãe de santo. Mas à meia-noite “o santo subia”, dando lugar ao samba. Na opinião do nosso entrevistado, os grandes responsáveis em colocar “a Portela dentro do samba” foram dona Benedita, irmã do seu Napoleão, que vinha do Estácio, e alguns personagens também dali provenientes, como o Brancura, Baiaco, Ismael Silva e “mais uns outros”. Nesse trecho o sr. Cláudio dá um testemunho acerca de manifestações que assumiriam o primeiro plano entre os populares do Rio de Janeiro no começo do século XX – o futebol; o samba, no caso, vinculado ao Carnaval, pois todo o tempo ele fala da Escola de Samba Portela; e o candomblé.

Cabe lembrar que tanto a prática do futebol como a do samba pelos populares nesse período mesclavam se a um processo de luta com vista a garantir sua prática. Afinal, nos primeiros anos da República predominava um quadro em que tais segmentos, excluídos de participação política, rejeitaram a segregação que se lhes pretendiam impor e, a partir de suas manifestações, desenvolveram formas alternativas de organização vinculadas ao terreno da cultura, através da qual edificaram uma cidadania. Conseguiram, assim, romper, em grande parte, as algemas com que se lhes pretendiam aprisionar, integrando-se à vida da cidade, inter-relacionando-se com as demais classes sociais.

 E repisar essa história nunca é demais, pois dela se podem extrair ensinamentos que favoreçam uma melhor compreensão do seu potencial e interesses. Futebol no Rio de Janeiro em seus primeiros tempos São inúmeras as interpretações acerca do papel do futebol para a sociedade brasileira: instrumento de dominação, de manipulação e de alienação para alguns, elemento de integração nacional para outros. Importante, porém, na minha perspectiva é salientar o movimento dos populares a fim de garantir o acesso à sua prática e o significado assumido por ela.

De esporte considerado próprio da elite, que pelo exercício aproximar-se-ia do modelo “civilizado” europeu, passa, na década de 1930, a ser valorizado pela influência negra, que teria dado ao futebol brasileiro um estilo nacional e uma maestria que, de longe, o fizeram superar aquele próprio dos seus locais de origem. Surgido na Inglaterra, o futebol já seria aqui praticado, em fins do século XIX, por imigrantes europeus e empregados de companhias estrangeiras, especialmente ingleses, mas também portugueses, italianos e alemães (Souza, 2002, p. 25). Reconhece-se, porém, que sua introdução formal, acompanhada das respectivas regras, coube a jovens filhos de famílias ricas, de origem anglo-saxã, que foram estudar naquele país.

O jogo logo atraiu brasileiros da elite, que acreditavam compartilhar, por meio de sua prática, a civilização e a modernidade dos ingleses. No início seu maior desenvolvimento ocorreu em São Paulo, pois a imigração estrangeira lá foi mais intensa. Não tardou, contudo, sua rápida difusão no Rio de Janeiro.

O Fluminense Football Club, fundado em 21 de julho de 1902, foi o primeiro dos clubes surgidos no Rio, composto basicamente de jovens brasileiros da alta burguesia, que buscaram associar ao esporte ali praticado a imagem de refinamento e de cosmopolitismo. Outros se sucederam na mesma linha, como o Botafogo Foot-ball Club e o América. O Bangu constituiu-se numa exceção nesse cenário, já que foi formado por técnicos ingleses que trabalhavam na fábrica de tecidos homônima. Embora, de início, o futebol fosse ali acessível apenas aos trabalhadores especializados, não tardou para que fossem aceitos operários de outras origens e não especializados (Pereira, 2000, pp. 28-32).

Esse foi um período em que ecoa com mais ênfase, junto à população, a maciça campanha de higienistas em favor do exercício físico, exaltado como fonte de energia e de saúde. Tal atitude vinculava-se ao fato de o futebol não só representar uma via para a vida saudável, mas também por se constituir em um elemento civilizador de acordo com as ideias provenientes da Europa (Jesus, 1999, p. 23). Alguns chegam a atribuir ao futebol uma série de vantagens sobre os demais esportes, inclusive no desenvolvimento do caráter dos praticantes. E novos clubes proliferaram nos mais diversos locais da cidade, seus associados buscando reproduzir a imagem elitista da prática desse esporte construída pelos membros do Fluminense ou do Botafogo (Pereira, 2000, p. 51).

De qualquer forma, apesar dos preconceitos de classe e de raça/etnia que caracterizaram o futebol em seus primeiros tempos, os populares participavam dele entusiasticamente, assistindo, amontoados nos terrenos vizinhos, aos jogos do Fluminense e de outros clubes da época, ao mesmo tempo que passavam, igualmente, a praticá-lo, como se depreende da fala do sr. Cláudio. Muitos lamentavam essa popularidade, que seria responsável pela perda do requinte peculiar ao jogo quando levado a efeito pelos segmentos mais “educados” da população. Não faltaram médicos para referendar tais pressupostos com o peso do seu saber.

Um deles enfatizava os benefícios do futebol apenas para a “mocidade mais preparada”, pois os demais, carentes de recursos, tinham de praticálo em terrenos de terra batida e a grande quantidade de poeira levantada durante as partidas, em vez de acarretar a “saúde do corpo”, dava lugar à “ruína do corpo”. Outro acentuava a importância de esse esporte ser praticado unicamente por indivíduos bem-nutridos, o que excluía os pobres de fazê-lo, legitimando o empenho dos sócios dos clubes elegantes em evitar que os trabalhadores a ele se dedicassem, o que se estendia, igualmente, com relação aos demais esportes (Pereira, 2000, p. 61).

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