A ESCRITA DA CONVERSÃO: CARTAS JESUÍTICAS DO BRASIL (NÓBREGA- 1549-1558)
Por: alyson f • 5/5/2020 • Trabalho acadêmico • 17.300 Palavras (70 Páginas) • 181 Visualizações
A ESCRITA DA CONVERSÃO: CARTAS JESUÍTICAS DO BRASIL (NÓBREGA- 1549-1558).
João Adolfo Hansen
DLCV- FFLCH- USP
" Estando un dia el Padre Joán de Azpilcueta, a quien acá llamamos Navarro, por la difficultosa pronunciación que tiene, enseñando a los niños a leer y a santiguarse, los quales todos trahen unas piedras de colores en los beços forados que ellos mucho estiman, las quales hazian impidimento a la pronunciación del santiguarse: y porque el Padre le dió a entender aquel ympidimento, vino la madre de uno de aquellos y quitó a su hijo aquella piedra y hechóla por los tejados, y luego los otros hizieron otro tanto."
(Nóbrega, Bahia, 10 de agosto de 1549)
A Carta Jesuítica
1- Neste texto, trato da prática da correspondência jesuítica do século XVI, utilizando as cartas escritas do Brasil, entre 1549 e 1558 , e o Diálogo sobre a Conversão do Gentio, de 1556 [1], do Pe. Manuel da Nóbrega.
2- Pressuponho que a observação do modo como a carta constitui e orienta a própria leitura explicita a historicidade dos critérios de verossimilhança da sua escrita. Por isso, mais que as matérias, inicialmente me interessa analisar as maneiras ou os estilos do discurso, pois são práticas que evidenciam os atos da invenção do agente histórico da correspondência e o éthos aplicado por ele à enunciação como decoro estilístico adequado à conformação de destinatários e assuntos determinados. Não são mera técnica aplicada do exterior, mas categorias de pensamento que modelam a forma mentis dos agentes da correspondência. Como imitação verossímil de discursos das instituições portuguesas contemporâneas, dramatizam enunciados teológico-políticos da devotio moderna da Companhia na Conquista.
3- A correspondência jesuítica é discurso que se apropria do modelo paulino da epístola e do ciceroniano da carta[2], mesclando informações sobre a ação catequética dos padres no Brasil com referências doxológicas, teórico-doutrinárias, da Igreja quinhentista. Esquematizando retoricamente a enunciação, hierarquiza as quaestiones finitae, os assuntos do referencial local de discursos, nos topoi da sublimitas in humilitate para um destinatário europeu. Composto como função de reconhecimento doutrinário que faz traduções do desconhecido por meio de um critério teológico e retórico universalmente partilhado, o destinatário é, na carta, personagem sinônimo do "eu" da enunciação, duplicando-o como circularidade de código.
4- Em sua escrita, a carta jesuítica apropria-se dos esquemas gerais da técnica epistolar da ars dictaminis, apresentando as três ou quatro partes definidas nas doutrinas antigas e medievais da mesma- salutatio, exordium (captatio), narratio (argumentatio), subscriptio - como nas de C.Julius Victor, Alberico de Montecassino ou Bernard de Meung[3]. Antes de tratar de suas partes, passo a comentar a questão do seu gênero.
5- Ao estudar as epístolas paulinas, Deissmann propôs que se diferenciasse carta de epístola[4]. De modo geral, escreve, a carta é sempre particular e refere uma circunstância específica para um destinatário também especificado; ao substituir uma visita pessoal, substitui o oral pela escrita; respondendo a uma necessidade do momento ou complementando uma instrução qualquer sobre um ponto nitidamente determinado, relaciona-se a um evento particular[5]. Quanto à epístola, propôs que não é individualizada, pois dirige-se à coletividade de um público conhecido ou é genericamente pública, tratando de questões gerais, teóricas ou doutrinárias, de modo dissertativo. A conceituação de Deissmann implica, portanto, a distinção platônica de diégese e mímese: enquanto a carta é diegética, figurando a "pessoa própria" do destinador e destinatário, a epístola é mimética, admitindo a impessoalidade e mesmo o anonimato de um discurso teórico, doutrinário ou didático, que lança mão de dissertação.
6- A distinção de Deissmann também parece manter a que as artes dictaminis medievais fazem entre correspondência familiaris e negotialis. Como se sabe, a primeira trata de assuntos particulares segundo um artifício de informalidade programaticamente clara, uma vez que o destinatário, convencionado como "familiar", não está presente no ato da escrita para formular prováveis dúvidas; a segunda ocupa-se de assuntos de interesse geral, por isso admite a erudição, a dissertação, a elocução ornada e a polêmica, já que não tem um destinatário específico ou ele é "não-familiar".
7- Com a distinção, Deissmann também propôs que os escritos paulinos, com exceção da Epístola aos Hebreus, assim como a 2a. e a 3a. de João, são "verdadeiras cartas". Afirmou não importar que tais discursos tenham sido dirigidos a igrejas ou a grupos de igrejas, pois seus interlocutores iniciais eram pessoas que, dum modo ou doutro, mantinham relações com o Apóstolo, dele recebendo conselhos, advertências e diretivas. Também não importaria que tais escritos de circunstância, às vezes redigidos apressadamente para atender a uma necessidade do momento, tenham sido inicialmente colecionados, depois empregados para leituras públicas em reuniões de culto e, finalmente, tratados como "Escritura": conforme Deissmann, sua primeira destinação deve impedir que sejam entendidos como tratados doutrinais na forma de carta, pois evidencia que são simplesmente cartas. Tratá-los de modo diverso quando se faz sua exegese consistiria, assim, em desconhecer-lhes a natureza verdadeira, correndo-se o risco de dar-lhes uma falsa interpretação [6].
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