ASPECTOS DO LAVRADOR NO AUTO DA BARCA DO PURGATÓRIO, DE GIL VICENTE
Por: Heitor Kobayashi • 4/2/2019 • Trabalho acadêmico • 3.353 Palavras (14 Páginas) • 487 Visualizações
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
ASPECTOS DO LAVRADOR NO AUTO DA BARCA DO PURGATÓRIO, DE GIL VICENTE
Disciplina: Literatura Portuguesa 1
Prof.ª Dr.ª Marlise Vaz Bridi
Aluno: Heitor Kobayashi de Lima Sant’ Ana
Prontuário: 9765111
São Paulo
2017
Objetivos do trabalho
Este trabalho tem como objetivo analisar o Auto da Barca do Purgatório através de trechos de um personagem, o Lavrador. A partir deste recorte será possível interpretar a obra como um todo.
Sobre o Auto da Barca do Purgatório
O Auto da Barca do Purgatório (1518) é um Auto de Devoção e faz parte da Trilogia das Barcas, sendo a segunda parte da Trilogia. Os outros autos que a compõem são o Auto da Barca do Inferno (1517) e o Auto da Barca da Glória (1519). O Auto da Barca do Purgatório acontece na mesma cena do Auto da Barca do Inferno e contém a mesma temática, apresentando algumas diferenças que serão abordadas mais à frente.
O Auto da Barca do Purgatório foi representado nas manhãs de Natal para a Rainha D. Lianor, no hospital de Tôdolos Santos, em Lisboa[1]. Participam do auto os seguintes personagens: o Anjo, o Diabo, o Companheiro do Diabo, o Lavrador, a Marta Gil – Regateira, o Pastor, a Moça Pastora, o Menino, o Taful (jogador) e Três Anjos. As almas humanas chegam a um braço de mar onde encontram-se duas barcas, em uma está o Diabo com o seu Companheiro e em outra está o Anjo. Estes “decidirão” qual destino as almas levarão. Neste auto são três destinos: Inferno, Paraíso e o “Purgatório” (margem do rio).
Para Costa, o Auto da Barca do Purgatório tem como objetivo dar continuidade ao Auto da Barca do Inferno[2]. Entretanto, existem certas diferenças entre elas e Costa resume muito bem:
“Este auto não focaliza os erros das diversas classes sociais, como é feito no Auto da Barca do Inferno, porém se volta para a idade de suas personagens, mostrando, de imediato, a condição das crianças quanto ao seu estado de salvação, também dos jovens e adultos. Ainda, pode-se perceber no Auto da Barca do Purgatório o destaque para as faltas cometidas por pessoas de condição humilde. Não há nessa obra nem uma personagem que faça parte da nobreza, apenas pobres [...]” (COSTA, 2009, p. 20)
Outra diferença é sobre o Diabo. No Auto da Barca do Purgatório o Diabo não é atribuído como um juiz que executa as sentenças, aqui ele acusa, ou seja, aponta os erros das almas cometidos em vida. Isto permite a defesa das almas e até mesmo a defesa pelo próprio Anjo que exerce uma função parecida com a do advogado. Isto ficará evidente no trecho que será analisado.
Análise do Lavrador
O Lavrador é o primeiro personagem a entrar em cena e interagir com o Anjo e o Diabo:
Vem um Lavrador com seu arado às costas, e diz:
Lavrador: Que é isto? Cá chega o mar?
Ora é forte cagião.
Diabo: Alto, sus, querei passar? 125
Ponde i o chapeirão,
e ajudareis a botar.
Lavrador: Da morte venh’eu cansado,
e cheo de refregéreo,
e não posso, mal pecado. 130
Diabo: Põe eramá i o arado.
Lavrador: Perém esse é grão mestéreo.
S’eu trouguera mais vagar
Sorrira-me eu tamalavez.
O arado em suas costas representa o seu ofício de Lavrador. Ao morrer ele chega cansado. Isto demonstra o quanto ele, um personagem pobre, tinha que trabalhar. Logo mais adiante, temos:
Diabo: E vós, vilão, querei zombar? 135
Se vós eu arrebatar?
[...]
Lavrador: Nem fico a dever duas favas,
nem um preto por pagar.
Diabo: E os marcos que mudavas, 145
dize, por que os não tornavas
outra vez a seu lugar?
Lavrador: E quem tirava do meu
os meus marcos quantos são,
e os chentava no seu? 150
Dize, pulga de Judeu,
que lhe dezias tu er então?
Diabo: Fostes o mais roim vilão!...
[...]
Pois por que vens carregado?
Lavrador: Porque seja conhecido
por lavrador muito honrado. 160
E tenho a glória merecido:
que sempre fui perseguido,
e vivi mui trabalhado.
Neste trecho fica evidente o papel do Diabo. Praticamente a todo instante ele acusa o Lavrador apontando os seus erros em vida. O Lavrador mostra-se convicto de sua inocência, como se não devesse nada a ninguém. Quando o Diabo o ataca, no verso 145, acusando-o de ter alongado o seu terreno, o Lavrador se defende dizendo que já tinham tirado parte de suas terras antes dele fazer isso. O Diabo, nada satisfeito, apela para o arado que o Lavrador tem nas costas, e este responde que o motivo de estar portando o objeto é para que seja reconhecido, pois trabalhou arduamente e tem a glória merecida, pois sofreu muito durante a sua vida[3].
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