Sobre a Farsa “Quem tem farelos?” de Gil vicente.
Por: bielzcavalcanti • 27/5/2019 • Dissertação • 1.937 Palavras (8 Páginas) • 1.042 Visualizações
USP - Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
FLC0280 - Língua Portuguesa I
A farsa “Quem tem farelos?” de Gil vicente é uma importante obra da Idade Medieval. Sua trama é desenvolvida a partir da busca por farelos por dois ajudantes de escudeiro, Ordonho e Apariço. Este acompanha o escudeiro Aires Rosado, um miserável apaixonado que faz trovas tão ruins quanto é sua percepção grandiloquente da própria vida. Esta obra é um importante documento histórico, em que Gil Vicente relata como eram os costumes, a sociedade e o fazer artístico do período. É, também, um instrumento de críticas contundentes aos que integram esta sociedade. Repleta de ironia e humor, a obra permite deleitar-nos com os comentários assíduos de Ordonho, Apariço e da velha e com o amor cortês que Aires presta à Isabel.
Originalmente, a expressão amor cortês foi definida por Gaston Paris em um artigo escrito em 1883, "Études sur les romans de la Table Ronde: Lancelot du Lac, II: Le conte de la charrette", um tratado onde ele analisa Lancelote, o Cavaleiro da Carreta (1177) de Chrétien de Troyes. O dito amour courtois era uma disciplina nobre e idealizadora. O amante (idealizador) aceita a independência de sua senhora e tenta fazer de si próprio merecedor dela, agindo de forma corajosa e honrada (nobre) e fazendo quaisquer feitos que ela deseje.
A teoria do amor cortês pressupõe uma concepção platônica (amor impossível, difícil ou que não é correspondido) e mística de amor. Existe nela a total submissão do enamorado à sua dama (por uma transposição do amor às relações sociais sob o feudalismo, o enamorado rende vassalagem à sua senhora) e a amada é sempre distante, admirável e um compêndio de perfeições físicas e morais.
O estado amoroso é uma espécie de estado de graça que enobrece a quem o pratica e os enamorados são sempre de condição aristocrática. Trata-se, frequentemente, de um amor adúltero, por isso, o poeta oculta o objeto de seu amor substituindo o nome da amada por uma palavra-chave ("senhal") ou pseudónimo poético.
O comportamento do Escudeiro Aires Rosado como exemplo da cortesania amorosa é controverso, já que vai na contra-mão de todo este estereótipo virtuosístico: entra então em cena o "nobre" Escudeiro, pretensioso e galante, cantando e tocando sob a janela de uma moça, suscitando a paixão de sua amada através dos seus "dotes musicais". Isabel encontra-se em um ambiente elevado, no alto de sua casa, simbolizando a idealização trovadoresca, porém, está também cercada por ruídos de cães e gatos e, logo após, pela Velha.
Aires, enquanto escudeiro, faz parte da cavalaria medieval, a instituição feudal dos cavaleiros. A coragem, a lealdade e a generosidade, bem como a noção de amor cortês eram os ideais associados (ou que foram associados pela literatura) ao código moral. Porém, as características desta personagem são quase que o oposto das prescrições dos clérigos sobre o código moral; Aires é mentiroso, pelintra, pretensioso e amador no que diz respeito à música e à poesia, além de não fazer parte da aristocracia. Sua covardia também fica evidente em trechos como:
(p. 11 - v 32 a 37)
“Air. Já vedes minha partida.
Os meus olhos já se vão;
se se parte minha vida,
cá me fica o coração.
Vai-se o Escudeiro, e fica a Velha dizendo à filha.
A farsa de Gil Vicente é carregada de um tom humorístico, tal como é de costume em suas obras que expõem as mazelas da sociedade com um olhar crítico e irônico. Em “Quem tem farelos?” podemos atribuir o efeito cômico ao vocabulário empregado pelos personagens, uso de ditos, expressões e situações corriqueiras e até mesmo banais, contraposição de ideias, as irônicas observações de Apariço, as banais interrupções dos animais à trova de Aires Rosado e sua distorcida visão da realidade.
Um importante marcador de comicidade em uma obra é o quão acessível esta é. Tal quesito pode ser percebido na farsa através do seu vocabulário. O fato de o autor optar por termos “baixos”, usados pela baixa sociedade, bem como o uso de ditos populares, faz com que este grupo social se sinta mais “próximo” do texto, podendo entregar-se mais às sensações que este venha a provocar, afinal, o uso de expressões requintadas daria ao interlocutor a sensação de estar diante de um texto “distante” e impassível de riso, considerando que rir de uma literatura elaborada e clerical seria uma conduta imoral no período. Podemos tomar como exemplos de tal uso de vocabulário e ditos populares, respectivamente, os seguintes trechos:
(p. 58 - v. 12,13)
“Ord. De qué sirve?
Apa. De sandeu.”
(p. 57 - v3,4,5,6)
“Apa. Ordonho, ordonho, espera mi.
Ó fideputa ruim!
Sapatos tens amarelos,
Já não falas a ninguém.”
O humor da obra também pode ser percebido por meio da orquestração nas falas dos personagens. Em alguns trechos podemos perceber que, ao falar de seus escudeiros, Ordonho e Apariço vão formando uma imagem virtuosa, até um verso que encerra a ideia ao mesmo tempo em que contrapõem toda essa construção virtuosística, como ocorre no trecho a seguir:
(p 64 - v 1,2,3,4)
“Ord. Y quando está en la posada.
quiere destruir la tierra.
Siempre sospira por guerra,
y todo su hecho es nada.”
Vale destacar, também, como fator cômico, as interrupções feitas à trova de Aire Rosado. Ora seu cantar é interrompido por acontecimentos banais como o ladrar de cães ou o miar de gatos, ora pelas assíduas e irônicas observações de Apariço, que por algumas vezes destacam um outro ponto que provoca risos, que é o vislumbre distorcido que Aires Rosado possui de si mesmo. Tais observações e a visão distorcida do escudeiro podem ser percebidas no trecho:
(p.
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