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O DIA EM QUE MORREU CESÁRIO VERDE

Por:   •  1/6/2020  •  Artigo  •  2.218 Palavras (9 Páginas)  •  364 Visualizações

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1 - O dia em que morreu Cesário Verde

Em 1886, Portugal era um país predominantemente rural. Fora de Lisboa e do Porto, não havia cidades. A maior parte da população - em cada 10 portugueses - vivia no campo, trabalhando uma terra pouco fértil e mal distribuída. A norte do Mondego, predominava a pequena propriedade, cultivada por camponeses e rendeiros pobres; a sul, havia o latifúndio. Ao contrário do que sucedia nalguns países europeus, a maioria dos senhores residia nas cidades, administrando as suas terras por intermédio de feitores; só um punhado de proprietários rurais se interessava o suficiente pelas suas explorações para aí tentar introduzir as inovações que sabia estarem a ser utilizadas no estrangeiro. Num país que dispunha de uma mão-de-obra inesgotável, a mecanização não prosseguia. Apesar de, em 1843, na Granja Real de Mafra, terem sido exibidas várias máquinas agrícolas, o seu número era ainda, quarenta anos mais tarde, extremamente reduzido. Aliás, dos três produtos cultivados em grande escala, o trigo, a vinha e o arroz, só com o primeiro era possível utilizá-las. A maioria dos trabalhos agrícolas continuava a ser feita por trabalhadores rurais, camponeses ou assalariados, com os métodos que os pais e avós usavam há séculos.

Depois das tempestades da primeira metade do século, Portugal atravessou, a partir de 1852, um período calmo. Durante alguns anos, a realidade correspondeu às expectativas. No litoral, as fábricas produziam bens de consumo simples, tecidos, pás e enxadas, tabaco, papel e rolhas. Para o mercado interno, evidentemente. Lá para fora, apenas mandávamos conservas de peixe, cortiça, gado e fruta. Mas os dias corriam felizes. Entre 1850 e 1880, a indústria cresceu e a agricultura prosperou. Em 1850, o total de cavalos-vapor existentes era de 938; em 1880 subira para 7000. No têxtil, cortiças e tabacos, existiam agora fábricas com mais de 500 operários.

O Minho exportava, em 1850, quantidades razoáveis de vinho e de gado, enquanto o Sul enviava para os mercados europeus laranjas, figos, uvas e amêndoas. Em meados de 1880, Portugal começou a ter rivais. A exportação de gado ressentiu-se da concorrência. Após a importação, pela Europa, de carne da América do Sul - um facto tornado possível pela introduçáo da navegação a vapor - o Minho entrou em crise. Por outro lado, na indústria, o mercado interno estava a ser invadido por produtos que aqui chegavam a preços baixíssimos. Os velhos pólos artes anais estagnavam. Mesmo as fábricas urbanas se sentiam ameaçadas. Serralheiros, tecelões e caldeireiros apelavam ao Governo para que se fizesse qualquer coisa.[ ... ]

Em 1886, assistia-se ao começo de uma crise que atingiria o auge em 1891.

 O clima de tolerância, sob o qual os Portugueses se tinham habituado a viver, estava a chegar ao fim. Ouviam-se gritos de «Vida Nova», ou seja, apelos a que o príncipe D. Carlos interviesse diretamente na política. Lisboa, cuja população havia dobrado nos últimos trinta anos, era uma cidade diferente da capital que acolhera Saldanha depois do golpe da Regeneração. Em parte devido à pressão dos recém-chegados, em parte porque o alargamento dos limites urbanos era uma forma de obter receitas para o Estado, a cidade alastrara rapidamente. A cintura urbana estendia-se quase até Benfica e Lumiar, onde, nos montes, ainda havia moinhos. Cesário Verde conhecia bem esta paisagem.

Especialmente no caso daqueles que haviam deixado as suas aldeias na véspera, as saudades do campo eram imensas. Nos quentes dias de Verão, era vê-los, a caminho das hortas, com cestos repletos de talhadas de melão, damascos e pão-de-ló. Na cidade, sentiam-se emparedados, sem árvores, no vale escuro das muralhas. Para os que ficavam nos bairros antigos, havia os bailes, sob as parreirinhas dos cafés, e a música ao ar livre, nos coretos pintados de fresco. A 18 de Julho de 1886, não faltavam distracções. De entre as solicitações, a mais popular era a tourada, que nessa tarde se realizava no Campo de Santana, na qual tomaria parte o conhecido cavaleiro Alfredo Tinoco. No Beco das Olarias, o baile era acompanhado por uma banda tocando um «variadíssimo repertório»; na sociedade Recreio Operário, na Rua dos Remédios à Lapa, a banda «abrilhantava» o baile proletário: na Nova Rossini, na Rua do Sol ao Rato, entre o bazar e o lanche, a filarmónica dos «Alunos de Guilherme Cossoul» deliciava os ouvintes. Nos jardins da Estrela, de S. Pedro de Alcântara e no de Belém, poder-se-iam ouvir concertos, entre as 5 e as 7 da tarde. Cesário Verde conhecia bem esta paIsagem.

 Em 1886, já tinham sido introduzidas em Lisboa algumas das inovações que facilitavam a vida urbana: os primeiros candeeiros a gás tinham chegado em 1884 e, em 1878, haviam sido instalados, no Chiado, seis candeeiros eléctricos. Mas estes melhoramentos não se propagaram rapidamente. Grande parte das ruas continuava a ser mal-cheirosa e mal alumiada. A civilização não chegara a todas as vielas, becos e escadinhas. Nos bairros antigos, a higiene era deplorável. Com quintais apinhados de galinhas, coelhos e porcos, as casas estavam infestadas de parasitas. Apesar de a captação do rio Alviela ter permi- tido instalar uma rede de distribuição de água ao domicílio, o benefício chegava a poucas casas. Nos mercados, as condições sanitárias eram péssimas, fazendo com que muitos dos géneros consumidos pelas clas- ses populares estivessem estragados. Os fiscais não chegavam para as encomendas. No mercado central, tinham sido inutilizadas, como impróprias para consumo, 81 pescadas, 76 peixes-espada e 1200 carapaus. Cesário Verde conhecia bem esta paisagem. [ ... ]

 Cidade portuária, a zona ribeirinha era uma das mais ativas de Lisboa. Era pelas docas de Alcântara que lhe chegava o carvão: pela de Santos, as mercadorias coloniais; pela do Cais do Sodré, os melões de Almeirim, o trigo do Alentejo, o peixe de Setúbal. Fragateiros, varinas e descarregadores povoavam este cenário febril. Todos os dias atracavam navios transatlânticos, despejando e recolhendo mercadorias. No sábado, o movimento da alfândega fora, como de costume, intenso: para o Maranhão, seguira, no Bragança, um carregamento de feijão; para Hamburgo, no Davis, 171 fardos de cortiça; para Liverpool, no Ter, 147 caixas de tomates; para Bordeaux, no Mokla, 226 caixas de sardinhas. De Newcastle, a bordo do Catarino Richard, chegara um carregamento de carvão. Cesário Verde conhecia bem esta paisagem.

É verdade que os burgueses portugueses eram modestos, quando comparados com os seus parceiros europeus, mas, em face da miséria indígena, pareciam uns nababos. os vãos de escada de prédios amontoavam-se cegos, mendigos e es ropiados. Os jornais transmitiam aflições: a Assunção da Glória, viúva, moradora na Travessa de S. João de Deus apelava ao público para que lhe desse qualquer coisinha e Amália Vidal, moradora na Rua da Mouraria, pedia a uma alma piedosa para lhe pagar o quarto, pois estava em vias de ser despejada. Os miseráveis eram os objetos que Deus colocara no caminho dos ricos para que estes pudessem exercer a caridade. No jardim da Estrela, tivera lugar, de manhã, um bazar, durante o qual as senhoras da Lapa leiloaram os despojos dos seus vestidos, imaginando obter, desta forma, um bálsamo para as desventuras dos pobres. Mas não havia caridade que chegasse n. para acudir ao exército de costureiras tísicas, de artesãos desempregados e de velhas abandonadas que pululavam pela cidade. Cesário Verde conhecia bem esta paisagem.

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