A TENSÃO ENTRE UTILIZAR E INTERPRETAR NA RECEPÇÃO DE OBRAS LITERÁRIAS EM SALA DE AULA: REFLEXÃO SOBRE UMA INVERSÃO DE VALORES AO LONGO DA ESCOLARIDADE
Por: Karen Louise • 1/11/2018 • Artigo • 4.592 Palavras (19 Páginas) • 467 Visualizações
IN: ROUXEL, Annie, LANGLADE, Gérard, REZENDE, Neide (orgs.). Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda Editorial, 2012 (ainda não lançado)
A TENSÃO ENTRE UTILIZAR E INTERPRETAR NA RECEPÇÃO
DE OBRAS LITERÁRIAS EM SALA DE AULA: REFLEXÃO SOBRE UMA INVERSÃO DE VALORES AO LONGO DA ESCOLARIDADE
Annie Rouxel
(Tradução: Marcello Bulgarelli)
A obra de Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção, relata, em seu primeiro capítulo, a seguinte anedota: depois da publicação de O Pêndulo de Foucault, um amigo de infância, que Eco não via há muito tempo, escreveu-lhe para reclamar do fato de ele ter utilizado no romance a patética história de seu tio e de sua tia. Tendo se identificado de tal modo à história, esse amigo acreditou reconhecer ali acontecimentos ocorridos em sua própria família. Ora, as personagens descritas por Eco foram criadas a partir de uma história de sua própria infância, concernente a um de seus tios e a uma de suas tias que realmente existiram.
E Umberto Eco comenta:
O que aconteceu ao meu amigo? Ele procurou no bosque[1] aquilo que se encontrava em sua memória pessoal. Se passeio pelo bosque, estou autorizado a utilizar cada experiência, cada descoberta para tirar ensinamentos sobre a vida, sobre o passado, sobre o futuro. Mas, como o bosque foi construído para todo mundo, eu não devo procurar, aí, fatos e sentimentos que digam respeito apenas a mim. Ao contrário, tal como escrevi em duas obras recentes, Os limites da interpretação e Interpretação e superinterpretação, não interpreto um texto, mas o utilizo. Não é proibido utilizar-se de um texto para sonhar de olhos abertos – nós todos o fazemos de tempos em tempos. Mas sonhar de olhos abertos não é uma atividade pública. Isto nos leva a caminhar pelo bosque narrativo como se este fosse nosso jardim privado...
Eco distingue utilizar/ interpretar :
O leitor empírico é todo mundo, nós todos, você e eu quando lemos um texto. Pode-se ler de mil maneiras, lei alguma impõe uma maneira de se ler e, freqüentemente, utiliza-se o texto como receptáculo de suas próprias paixões, que provêm do exterior do texto ou do que o texto suscita fortuitamente nele (Eco, 1996, p.16-17)
Essa oposição estava já presente em Lector in fabula (1985, p. 73), onde o semioticista distinguia “a utilização livre de um texto concebido como estímulo da imaginação e a interpretação de um texto aberto”. Presente também em Os limites da interpretação (1990, p.39-40) onde a dicotomia é explicitada pela oposição intentio operis / intentio lectoris.
Eu gostaria de voltar a essa oposição, aprofundar, questionar, interrogar sua legitimidade, perceber suas ocorrências em sala de aula.
Seguindo o discurso de Umberto Eco, à luz de diversos exemplos que ele propõe nas três obras mencionadas, é fácil evidenciar as três oposições a seguir como constitutivas da distinção entre utilizar e interpretar.
- Essa distinção repousa sobre uma oposição no uso que é feito da obra: utilizar refere-se à esfera privada e à pesquisa de uma significação para si; interpretar é uma atividade da esfera social e implica a busca de uma significação senão universal ao menos consensual na comunidade cultural onde foi produzida a obra.
- Porém, correlativamente, e mais profundamente, o que se distingue nessa oposição é a fonte do saber e sua extensão:
- Utilizar repousa sobre a experiência que o leitor tem do mundo; interpretar convoca, também – algumas vezes, sobretudo – um saber sobre a literatura.
- Utilizar remete a uma experiência limitada ao universo pessoal dominado por crenças; interpretar supõe uma experiência rica e diversa (uma vasta enciclopédia, uma ampla biblioteca interior).
- O que está igualmente em jogo é a natureza da atividade intelectual: utilizar é “sonhar com olhos abertos”; interpretar supõe uma abordagem heurística fundada sobre inferências; a interpretação liga-se ao modo de pensar racional. Essa oposição se declina da seguinte maneira:
- Atividade de pensar caracterizada pela liberdade (liberação do imaginário e projeção de pulsões) VS atividade de pensar constrita (tendo em conta um certo número de parâmetros: subjetividade controlada)
- Concernente à relação com o texto: com a utilização, o texto é dominado ou pré-texto; com a interpretação, é o equilíbrio entre “direitos do texto” e “direito do leitor” que é buscado.
Essa análise suscita um certo número de questões: as duas atividades são incompatíveis? Uma alquimia seria possível? Seria desejável? Sob quais condições?
1. Estado dos lugares
Consideremos a realidade da escola e a aprendizagem da interpretação.
Na escola primária, os documentos oficiais para o ciclo 3 [último ano do ensino fundamental 1, crianças com dez, onze anos] apresentam a interpretação como a segunda fase da atividade de leitura ligada à dimensão social da leitura em classe, pois ela se afirma no confronto com o outro, dentro do conflito sócio-cognitivo.
No ensino fundamental II, o termo interpretação não aparece nos textos oficiais. É sobretudo questão de “desenvolver a capacidade de ler” e de “suscitar o gosto pela leitura”.
No ensino médio, a interpretação é apresentada como a fase de conclusão da leitura analítica, fase que sucede à observação metódica dos elementos constitutivos do texto. Essa atividade envolve conhecimentos complexos. Ela é de fato uma metaleitura e requer a postura crítica e distanciada, característica de uma leitura letrada.
No que concerne às práticas de leitura, e particularmente aos comportamentos dos alunos, observa-se uma paradoxal inversão de valores ao longo da escolaridade. Enquanto se ensina os mais jovens a se autodescentrar e desconfiar de sua subjetividade, pede-se hoje aos alunos do ensino médio a se envolver intelectualmente e afetivamente nas obras que leem, até mesmo a utilizá-las em seus diários de leitura.
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