Os pecados da civilização: o homem, a natureza e a cultura
Por: Monique Coêlho • 2/7/2017 • Artigo • 5.355 Palavras (22 Páginas) • 341 Visualizações
FARIAS, F. R. Os pecados da civilização: o homem, a natureza e a cultura. Mente Social. v. 3, nº 2, abril de 1997.
O homem enfrentou e enfrenta, constantemente, grandes obstáculos desde o momento em que fez sua aparição, no universo, enquanto ser não natural. Certamente nos referimos aqui, por um lado, ao homem como animal falante, quer dizer, ser da falta e do desejo e, por outro, à natureza como exterioridade, da qual o homem provavelmente surgiu. Pelo fato de o homem ter-se produzido através de um ato de criação, no seio da natureza, sua relação para com esta, configura uma espécie de drama que retrata não só a tensão dessa relação, como também o próprio processo de constituição do homem.
A partir do momento em que surgiu, o homem enfrenta e afronta a natureza. Precisamente para enfrentá-la, e também para levar a cabo seus intentos, viu-se obrigado a lutar com suas forças contra esse “monstro” que, de maneira inexorável, afigurava-se a sua frente, como uma fonte inesgotável de enigmas e de inquietações. A questão enigmática que o homem coloca constantemente para si mesmo, pode muito bem ser colocada nos seguintes termos: o que explica meu surgimento? Uma vez tendo surgido na natureza o que devo a ela? Como e com que pagar essa dívida? E ainda, existindo essa dívida, a mesma é pagável em que termos?
Esses questionamentos que são próprios da condição humana, já apontam para uma direção da vinculação do homem com a natureza. Quer dizer, para iniciar uma trajetória em torno de uma tão complicada questão, poderíamos mesmo nos arriscar a dizer que o homem deve sua vida à natureza. No entanto devemos atentar, o máximo possível, para o sentido que a palavra dever comporta nesse contexto pois, por se tratar de uma dívida originária é de fundamental importância levar em consideração os devidos rastreamentos e caminhos construídos pelo homem naquilo que se denomina de existência e de percurso de vida. Devido a essa dívida constitutiva, a posição ocupada pelo homem no universo é sustentada por uma espécie de tensão e de nostalgia, especialmente quando supõe, na atualidade, ter alcançado, em eras remotas, um estado de harmonia, de bem-estar e de plenitude. Dito de outra maneira, o homem traz, no seu íntimo, como uma convicção inabalada, a sensação de que um dia, em priscas eras, vivenciou um bem-estar, sendo a natureza responsabilizada por esta suposta perda. Aqui cabe ressaltar que tanto a sensação da vivência de um bem-estar como a possibilidade da perda do mesmo não passam de ficções alentadoras. Assim vive o homem tentando encontrar algo na natureza que possa se constituir como um bálsamo para sua perda constitutiva. A natureza, como exterioridade, de certo modo intocável, não cessa de confrontar o homem com um limite, o que é traduzido em termos de falta.
A dimensão da falta no homem leva-nos a pensar na sua heterogeneidade para com a natureza. A diferença radical instaurada entre o homem e a natureza colocou ambos em posições singulares. De um lado, a natureza, com seus enigmas, convoca o homem, exercendo nele um fascínio irresistível no sentido de desvendá-los. Do outro, o homem movido por uma esperança de onipotência, encarregou-se desta tarefa impossível. Não se sabe se foi de bom grado, nem porquê foi levado a isso! Talvez a inquietação de seu espírito tenha feito dele o agente de uma tarefa impossível. Mas não se trata de um impossível qualquer! Nos referimos a um impossível bastante significativo, pois pelo fato, de o homem, ter-se dedicado a este impossível é que alguma coisa, na sua vida, tornou-se possível. Por isso, correu o risco de enfrentar a natureza mergulhando num continente negro, sem poder avaliar as consequências de suas ações, até porquê fez um adentramento num desconhecido, numa escuridão onde somente Chronos fazia-se senhor e soberano. Não que se esteja aqui sugerindo uma preexistência do tempo, mas apenas pensá-lo como aquilo que não se coloca como objeto de conhecimento para o homem.
A reação do homem frente a este desconhecido, a esta imensidão que é a natureza, foi de preocupação. Preocupação pois teve que lidar com o mais familiar - o mundo que o circunda -, e o mais estranho - a inapreensão total das coisas a sua volta . Além de tentar decifrar os enigmas da natureza, o homem teria também que se preocupar consigo mesmo, ou seja, como encontrar essa harmonia supostamente perdida. Estaria na natureza? Eis o mais crucial dos interrogantes que o homem colocou para si mesmo. Caso esta harmonia pudesse ser encontrada na natureza, o homem a teria perdido. Se, com relação à natureza o homem interpreta, não com total segurança, seu devir como perda, o mesmo não ocorre em relação ao seu íntimo, a sua insatisfação e ao seu inacabamento. Em que ponto reside a diferença? Esta não é uma questão simples. No entanto, pode-se mesmo tentar levantar suposições. Mesmo que o homem interprete seu surgimento na natureza com referência a uma perda, uma outra leitura tem que ser convocada para falar da relação do homem consigo mesmo.
Uma pista nos é sugerida por Freud para pensar esta questão. A direção apontada pela interpretação freudiana acerca das ações do homem sobre a natureza é formulada em termos da expressão de uma inteligência superior. Sendo assim nos informa Freud[1],
...embora os caminhos e desvios (traçados pelo homem neste empreendimento), sejam difíceis de acompanhar, há nisso uma ordem em direção ao melhor. Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza.
São duas posições distintas: a que indica a relação do homem com a natureza sugere uma perda, e a que dimensiona a relação do homem consigo mesmo pode ser traduzida como uma espécie de perdição qualquer. No entanto, o homem encontra-se perdido “de uma perdição que tem em si seu próprio artífice”[2].
Perda por um lado, perdição por outro. Como enfrentar e solucionar esses impasses? Este é um dos pontos indispensáveis para se pensar a trajetória do homem fazendo uma história. Desde os tempos mais remotos até a atualidade, a história da existência do homem é, sem dúvida, a história de uma travessia marcada, principalmente, pela constante necessidade do homem dominar a natureza e dominar-se. Isto quer dizer que sua intenção e seu firme propósito era e ainda continua sendo, produzir conhecimentos visando utilizar-se dos mesmos, num grau mais elevado, para conhecer e transformar a natureza. Difícil tarefa de decifração marcada por obstáculos intransponíveis!
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