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O herói sob a perspectiva revolucionária e da subversão em psicanálise

Por:   •  28/8/2021  •  Artigo  •  7.960 Palavras (32 Páginas)  •  135 Visualizações

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O herói sob a perspectiva revolucionária e da subversão em psicanálise

Introdução

Após a revolução copernicana deslocar o homem do centro do universo e a teoria darwinista descender a espécie humana da mesma origem dos macacos, a psicanálise fez o inconsciente prevalecer sobre as luzes da consciência, onde o homem não seria mais “senhor em sua própria casa” (Freud, 1917/2010, p. 251). A descoberta da psicanálise trouxe à cultura uma perspectiva diferente no que tange à investigação e ao tratamento do sofrimento humano, consolidando-se como uma “ciência” e um “método de investigação dos processos psíquicos inconscientes” presentes nas mais diversas manifestações humanas (Freud, 1922-1923/1996, p. 268; 1925/1996, p. 72).

A psicanálise, desde o seu surgimento, mostra-se como uma práxis que perturba a ordem estabelecida, um discurso que consterna o status quo, sinalizando a tendência do homem de não se harmonizar ou satisfazer totalmente no interior da civilização. Não bastasse o lugar revolucionário ou subversivo inerente à descoberta da realidade psíquica inconsciente – desde seus fundamentos como prática clínica e aposta teórica sob a perspectiva dos fenômenos do inconsciente –, este texto pretende destrinchar essas noções em psicanálise. Trata-se de trazer ao leitor argumentos que sinalizem uma práxis que carrega consigo tanto uma perspectiva revolucionária quanto subversiva sob um ponto de vista político. Para isso, faremos um percurso sobre a figura do herói em Freud, retomada e desenvolvida posteriormente por Lacan, de modo a localizar nesse conceito a indicação de duas direções, a saber, uma perspectiva revolucionária e outra subversiva, como direcionamentos clínicos aos destinos do sujeito e também como apostas ao mal-estar na civilização.

Nosso primeiro argumento centra-se na concepção do herói situado diferentemente conforme as primeira e segunda tópicas freudianas. A primeira condiz com a descoberta da centralidade do inconsciente, que se aproxima de uma direção subversiva, e a segunda às voltas com a prevalência da instância do eu, cuja perspectiva aproxima-se do sentido de revolução. Este trabalho procura ressaltar essa diferença, tendo em vista não apenas os desdobramentos dessa distinção no cerne do tratamento psicanalítico e nas querelas clínicas entre os pós-freudianos, mas também no que concerne ao pacto social.

Ao seguir as pistas deixadas por Freud (1921/2011), nas quais a psicanálise não conceberia uma separação entre psicologia individual e psicologia social, a psicanálise concebe que a constituição psíquica está atrelada aos laços sociais, nas relações ambivalentes estabelecidas com o outro semelhante e o Outro simbólico na cultura, de modo que a realidade concebida pela psicanálise é sempre uma realidade psíquica, pois atravessada pela dialética do princípio de prazer e princípio de realidade.

Nosso segundo argumento parte da seguinte afirmação de Lacan (1959-1960/1997), extraída do seminário A ética da psicanálise: “Alguma coisa, certamente, deverá permanecer aberta no que se refere ao ponto que ocupamos na evolução da erótica e do tratamento a fornecer, não mais a fulano ou sicrano, mas à civilização e a seu mal-estar” (p. 25), em que a psicanálise, apesar de não pretender ser uma visão de mundo (Weltanschauung), nem por isso deixa de se debruçar sobre fenômenos socioculturais e políticos, de modo a alcançar “em seu horizonte a subjetividade de sua época” (Lacan, 1953/1998, p. 322). Desse modo, apesar de a psicanálise ser uma ética de experiências singulares circunscritas ao campo da clínica, ela se apresenta como uma práxis que promove atravessamentos do inconsciente que têm implicações na relação dos sujeitos com os outros semelhantes e aos ideais da cultura, em uma dimensão que atravessa e traz consequências à dimensão coletiva.

É a partir de um duplo sentido que desenvolveremos a concepção do herói em psicanálise. Aquele que se situa como homem comum em seu mito individual neurótico, como aquele que, por meio de um ato, enseja uma mudança em relação às coordenadas simbólico-imaginárias que o determinam, tocando o real. O percurso que desenvolveremos a respeito da figura do herói na teoria freudiana aponta para uma série de significações que acompanham as transformações da própria metapsicologia psicanalítica. Partimos, então, do herói enquanto figura estruturante da fantasmática edípica, que busca ser amado por todos e manter seu narcisismo, como se jamais fosse sujeitar-se à castração, para pensar o herói com Lacan e seu acento à primeira tópica freudiana, como aquela figura que pode criar alternativas às capturas de seu destino, correndo os riscos necessários aos abalos narcísicos em sua assunção à castração, direcionando-o rumo à causa de seu desejo.

O herói na montagem edípica.

A primeira vez que Freud escreveu sobre a relação entre sujeito e cultura foi em uma carta endereçada a seu amigo Wilhelm Fliess no dia 31 de maio de 1897, intitulada pelos editores de suas obras completas como Rascunho N. Por essa época, proposições como a do Complexo de Édipo, enquanto estrutura organizadora das relações inconscientes e do recalcamento como princípio fundador do sistema psíquico, estavam começando a ser elaboradas em seu pensamento. Nessa carta, Freud lança algumas de suas hipóteses mais fundamentais sobre uma teoria psicanalítica da cultura. Uma das principais ideias apresentadas diz respeito ao “horror ao incesto”, assinalando, pela primeira vez, o tema das proibições como princípio regulador da civilização a partir do recalcamento das pulsões. Como efeito disso, Freud aponta que o esforço que o indivíduo deveria empreender contra o desejo de realizar o incesto se encontrava no empuxo a substitutos para sua satisfação, como as fantasias, as criações literárias e a formação de sintomas.

A definição de “santo” (heilig) aparece no Rascunho N para indicar o sacrifício necessário que o sujeito deve fazer de uma parte de sua liberdade sexual, isto é, da liberdade de se entregar às perversões, em benefício da participação em algo maior numa comunidade. Assim, o autor apresenta a hipótese que irá percorrer toda sua teoria sobre a relação entre sujeito e cultura: “o incesto é anti-social”, afirma Freud, e “a civilização consiste nessa renúncia progressiva” (1897/1996, p. 307). O horror ao incesto, então, antes mesmo de ser desenvolvido em Totem e tabu, já aparece como a condição que possibilita e determina os laços sociais. Mas Freud encerra seu texto apontando para uma personagem que escaparia a essa renúncia pulsional. Fazendo alusão à obra Assim falou Zaratustra, do filósofo Friedrich Nietzsche, conclui: “É o contrário do super-homem” (p. 307). Com essa asserção, Freud parece apontar para algo que escaparia à renúncia pulsional que a civilização impõe sobre os sujeitos e que, se não se manifesta em sua condição sacra, surge como força de resistência do sujeito que se consterna ante as imposições da sociedade.

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