As Teorias sociais da posse
Por: marcosvfo • 16/10/2018 • Bibliografia • 5.721 Palavras (23 Páginas) • 287 Visualizações
3.2 Teorias sociais da posse
De uma forma ou outra, seja pela noção de corpus, de domínio, ou ainda pelo animus domini, seja pela fala de Ihering ou da de Savigny, o que se enunciava sobre a posse, nas relações interpessoais, provinha estritamente do direito privado e teve como foco a defesa do patrimônio ou do status quo individual.
Na utilização da coisa, mesmo que de forma econômica, ou seja, a retirar-lhe imediatamente a utilidade ou frutos mediados, apresentava-se a posse, com extremo vigor, no ordenamento privado, e para deleite de seu titular.
A posse teria natureza jurídica mista, ora como fato jurídico, ora como direito subjetivo.
Todavia, esse uso individual, além de interessar diretamente ao titular da riqueza, penetra na conveniência do coletivo. Os modernos Savigny e Ihering, mesmo tendo bebido da teoria kantiana, dela se afastaram a partir do momento em que deixaram de considerar a posse como união de vontades; do titular e do alter.
Exemplo disso se verifica quanto à indústria, porque passa a interessar a toda sociedade a forma como ela se vale de seus bens, na transformação da matéria prima em produto ou fruto acabado, e o que é feito com os resíduos desse processo.
Interessa ao coletivo, de outro lado, a forma do condutor dirigir o veículo nas vias e logradouros públicos. É relevante à sociedade a preservação do meio ambiente quando presente a exploração econômica da terra, dos rios e oceanos, e assim também o é com relação às relações de emprego nas fazendas. Merece destaque o destino que o possuidor de bens móveis consumíveis, após consumi-lo, dá ao resíduo que geralmente abandona em locais impróprios, que em momentos de acirrada chuva faz entupir os dutos e canais de coleta de água e esgoto nas cidades.
Assim, toda a gama de relações possíveis, todo o horizonte de possibilidades que se refere à posse deve percorrer sendas para além dos enunciados jusprivados de fito moderno, porque a forma como se exercita a posse alcança a toda sociedade. Na posse, o uso e gozo privados são, em si, usos que se dão, ou tocam, no ambiente público. Isso sempre foi assim, porém o civilista pareceu se esquecer de que se situa ínsito a um ordenamento jurídico único, sistêmico e complementar, onde as disposições do direito privado têm seu papel ordenador, mas que há outros influxos normativos que também incidem sobre as relações com as coisas, ou sobre a coisa mesma, seja do possuidor para o alter, seja do alter para o possuidor.
Isso não é novidade advinda com o estatuir do Estado democrático de direito.
Roma conheceu as servidões, o direito lusitano as sesmarias, o direito brasileiro as relações entre vizinhos. Tudo quanto se mostra desses institutos se dá no palco social, no mundo intersubjetivo, seja ele formalizado ou não em direito real sobre coisa alheia. Não se exercita a posse, seja ela baseada em Savigny ou Ihering, sem que, em algum momento desse exercício, o coletivo seja aí incluído. Kant percebera isso.
O poder fático sobre a coisa móvel ou imóvel que os romanistas preconizavam hodiernamente se verifica como faticidade, como fenômenos, fatos e atos humanos que provocam o Jurídico e assim produzem diversos efeitos, públicos (administrativos) e privados. A posse civil é, antes de tudo, um instituto civilizador.
Autores então, verificando que a posse ocorre também no palco do social e nele produz efeitos jurídicos, procuraram expor suas teorias sociais ou ainda econômicas da posse. De certo nada inventaram ou inovaram. Apenas verificaram que o fenômeno posse extrapola os limites da relação de domínio prático sobre a coisa e também a relação jurídica estabelecida diretamente entre os indivíduos que a circulam.
Alterou-se, contudo, o foco justificador e funcional da posse. De guarida e corolário de propriedade, de instrumento e instrumentalização de sua defesa, a posse passa a ser encarada por si mesma e com a preocupação de sua fundamentação e real função social, despregada da relação dominial. A evolução inicial se deu de forma tímida, obtendo maior expressão em Hernandes Gil.
Nesse sentido Perozzi, Barassi, e Saleilles, além de Hernandes Gil apostaram suas contribuições para a posse individual no ambiente coletivo, na medida em que o próprio Estado de matriz liberal transmutava-se para garantir a permanência do modelo capitalista, através da ideia de se entregar bem estar social às camadas hipossuficientes da população.
3.2.1 Silvio Perozzi
Em Perozzi, a posse é fenômeno social de origem consuetudinária, um legado dos homens em certo grau de civilização , disse Gil (1.969). Tem, portanto, origem pré-estatal e está a guisa dos costumes e mesmo a vontade do Estado em nada intervém para sua construção. Ela se mostra, assim, como relação ético-social (ético-cultural) que toma parte na moralidade social. No mesmo sentido, Toledo (2.006, p. 37).
Isto porque o possuidor, ao exprimir a vontade de possuir a coisa e mantendo sobre ela a plena disposição de fato, estaria, em verdade, revelando a abstenção de toda a sociedade que se mantém inerte e afastada, num tom de respeito, quanto àquela relação possessória. Essa seria o principal foco de sua concepção social da posse, ou seja, a posse de um advém do respeito e reconhecimento da sociedade; não de um complexo normativo e positivado.
Todavia, por mais que tente se afastar dos seus predecessores Savigny e Ihering, não o concebe, de todo. O que ele fala a sustentar a posse, ou seja, sua força erga omnes, ou o reconhecimento do alter que a relação possessória se dá com o caráter da exclusividade, pertence de todo, ao conceito de propriedade privada (direito de sequela) desde sua origem greco-romana.
Possivelmente esse querer dispor exclusivo da coisa, com a abstenção espontânea dos demais, em que finca Perozzi a essência da posse, é no fundo uma evocação – por outra via ou com outras palavras – do domínio.
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