O PARADOXO DAS BOAS INTENÇÕES
Por: Eloá Guirelli • 31/3/2019 • Trabalho acadêmico • 2.980 Palavras (12 Páginas) • 150 Visualizações
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ELOÁ GOTTARDELLO GUIRELLI
Número USP: 7998480
O PARADOXO DAS BOAS INTENÇÕES
Trabalho de conclusão de semestre para a disciplina Crítica Teatral II da graduação em Artes Cênicas pela ECA-USP.
Docente responsável: Paulo Bio
SÃO PAULO
2018
O paradoxo das boas intenções
Eloá Gottardello Guirelli[1]
A despeito de estarmos há muito conscientes de que “de boas intenções o inferno está cheio”, as boas intenções merecem ser reconhecidas e valorizadas, especialmente neste momento histórico conturbado pelo qual passamos, fase obscura em que caminhamos rumo ao silenciamento de nosso pensamento crítico. Nesses últimos respiros de liberdade de expressão, ainda é possível discutir assuntos como controle e poder, fanatismo, supressão de diferenças e de minorias, a sede de verdade que afoga os indivíduos num mar de irrelevância. Ainda há espaço para sonhar com a expansão da noção de humanidade. Numa realidade obtusa, é precioso encontrarmos artistas que, dispostos a enfrentar os riscos subjacentes à iluminação de certos temas – os quais se relacionam intimamente com as questões políticas efervescentes nos últimos meses, ainda que de maneira indireta – se propõem a desenvolver projetos artísticos (encenações teatrais, no caso dos que estão contemplados nas linhas desta reflexão) que pretendem o despertar do pensamento crítico.
Entretanto, há que se tomar muito cuidado com as escolhas - das palavras e do discurso, dos métodos e dos processos, da forma (já que forma também é conteúdo) - para que durante o perigoso percurso de criação até a constituição do produto final, os esforços de promover tão nobres reflexões não se transformem em profundos paradoxos. Quantas vezes acabamos reiterando o que pretendíamos criticar? Como quando passamos todo o período eleitoral militando contra a corrupção dos governantes e dos políticos, enquanto continuamos furando filas, fazendo conversões proibidas no trânsito, subornando o guarda, apresentando atestado médico para doenças inexistentes, fraudando o comprovante de meia-entrada para pagar menos no teatro, enfim: criticamos a corrupção e somos corruptos ao mesmo tempo, ainda que tenhamos o álibi da boa intenção.
Tratemos, então, de duas encenações contemporâneas que, repletas de boas intenções, lançaram-se no abismo dos paradoxos: “Os 3 Mundos” e “Peça para adultos feita por crianças”. A primeira se arrisca a abordar conteúdos provocativos, mas, paradoxalmente, sua estética espetacular, no sentido pejorativo da palavra, acaba quase que anestesiando o senso crítico da plateia. A segunda se vale de uma estética provocativa, porque usa o ator-criança para desestabilizar a percepção do espectador adulto, mas seu conteúdo revela tanto uma incompreensão do ponto de partida – Hamlet, de Shakespeare - quanto uma ilusão a respeito da autonomia das crianças com relação à criação.
O ambicioso projeto de mesclar artes do movimento e da presença com artes do enquadramento e da edição, que resultou no espetáculo “Os 3 Mundos”, dirigido por Nelson Baskerville, teve sua semente nos desejos e interesses de uma das atrizes, Paula Picarelli. Na tentativa de unir sua experiência pessoal como integrante de um culto que envolvia o consumo de ayahuasca à sua prática de kung fu e ao romance “1Q84”, do japonês Haruki Murakami, e de transformar todos esses campos de interesse numa montagem teatral, a atriz convidou os dois quadrinistas mais renomados do Brasil, Fábio Moon e Gabriel Bá, para escreverem a dramaturgia da peça. Nota-se que as pessoas envolvidas nesta montagem não têm uma trajetória artística enquanto grupo; ou seja: os artistas, que não comungam do desenvolvimento de uma pesquisa, agruparam-se com o intuito de levantar um espetáculo. Estamos tratando aqui, então, de um tipo de processo que já se inicia tendo em vista a constituição de um produto final, que, no caso de “Os 3 Mundos”, é um produto complexo e caro, cuja realização foi viabilizada pelo patrocínio do SESI-SP, depois de 4 anos de negociações.
Algo parecido acontece com “Peça para adultos feita por crianças”: o projeto foi concebido pela diretora Elisa Ohtake, que, procurando entre jovens estudantes de cursos de teatro “aqueles que demonstrassem entusiasmo e fossem espertos” (como disse Ohtake à Leandro Nunes do Estado de São Paulo) escolheu 5 crianças - Davi Hamer, Felipe Bisetto, Joana Arantes Fix, Michel Felberg e Vitória Reich - para fazer parte de um estudo sobre Hamlet.
Mais barato que “Os 3 Mundos”, o espetáculo contou com financiamento coletivo via catarse, cuja contrapartida da distribuição de ingressos aos colaboradores lotou as sessões com uma platéia atípica, formada por pessoas que evidentemente não vão ao teatro com freqüência, haja visto os muitos aplausos após cada cena da peça. Ponto positivo para as crianças que conseguiram mobilizar esse público.
As questões referentes à trajetória – ou à não-trajetória - enquanto grupo, bem como as que se referem ao caráter do processo, suas hierarquias e seus financiadores, ficam impressas na obra, inevitavelmente. Não há problema algum em se ter um projeto cuja finalidade seja o produto e não o processo ou a pesquisa; nem isso faz desse tipo de montagem algo menor, se comparada a outros modos de concepção de um espetáculo, conquanto essa lógica – ou qualquer outra - não tente se revestir de algo que não é. A “Peça para adultos feita por crianças”, por exemplo, não parece ser feita, de fato, por crianças. Talvez fosse mais justo chamá-la de “peça para adultos feita com crianças”.
Independentemente do título, o gesto de colocar os pequenos no palco numa encenação que não se destina ao público infantil é notável. Dar voz às crianças significa considerá-las seres já perceptivamente desenvolvidos, seres sociais ativos, protagonistas de seu próprio aprendizado; e não seres inacabados que estão sempre numa atitude receptiva e passiva, de aprendiz, como supõem os adultos com tamanha recorrência. Além disso, caso fossem adultos falando para outros adultos sobre a falência do antropocentrismo e sobre a importância de uma educação trans-humana, do modo como são abordados tais assuntos neste espetáculo, é bem provável que os espectadores-adultos logo se desinteressassem e sequer se atentassem à sua própria chatice. A presença da criança na cena gera diversos sentidos e inseri-la num contexto que não é aquele associado ao universo artístico infantil, implica uma mudança radical na percepção do espectador.
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