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A constituição contra a constituinte

Por:   •  14/6/2016  •  Bibliografia  •  5.251 Palavras (22 Páginas)  •  191 Visualizações

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A constituição contra a constituinte

Renato Janine Ribeiro

Prof. do Depto. de Filosofia da FFLCH da USP

O termo constituição, empregado em sentido político, pode remontar a antiguidade grega e romana[1]. Nestas notas, porém, vou limitar-me á ideia por assim dizer moderna de constituição, que desponta pelo século XVI, e centrar-me no aporte inglês a ela. Também enfatizarei a diferença existente entre constituição e constituinte: esta última pressupõe a noção de soberania, que somente vai se consolidar em fins do século XVIII, e por isso está ausente do pensamento constitucional dos Seiscentos e boa parte do Setecentos. Este percurso também permitirá entender porque a Inglaterra, primeiro país a ter, modernamente, constituição, não possui uma constituição escrita e nunca teve uma constituinte em sentido pleno.

Vem da medicina o termo da constituição[2], especialmente da hipocrática, depois revista por Galeno e mais tarde, durante a Idade Média, enriquecida por elementos árabes. O seu pressuposto é de que o corpo político é análogo ao corpo humano, e portanto do que vale para este também se aplica aquele.

Velha analogia esta[3] – mas que se destaca na Renascença.

Tillyard, num livro belo, embora criticado[4], mostra algumas das correspondências que então se tramavam entre os astros, as pedras preciosas, a política, os animais, as aves, o corpo humano. Não importava tanto que fosse rei dos animais o leão ou o elefante, este por seu tamanho, desde que entre eles se reconhecesse um rei. Por sinal, é o que faz até o século XVII, pensar-se que as abelhas têm, não uma rainha, mas um rei[5]. Tal modelo de correspondências, no qual mais nos interessa a que engata o corpo político no humano, ainda dá titulo á primeira das grandes obras de Thomas Hobbes, De Corpore Político, de 1640, o mesmo filósofo retoma a figura na capa e páginas introdutórias do Leviathan (1651), porém para usar símiles tão abstratamente, tão despidos da materialidade, que rompe o velho sistema analógico: assim, em vez de identificar o rei á caput  do homem, o cabeça á cabeça (como fizera, entre tantos, o rei Jaime[6]), o que ele faz sobressair é, no político, a soberania, no corpo humano a alma. Contudo, se esse filósofo algo marginal ao pensamento dominante contesta o velho aparato de identificações e correspondências, tal sistema perdura, na política paternalista das monarquias (ainda ás vésperas da Guerra de 1914), e também em todas as instâncias sociais nas quais se reparte o poder: um exemplo é o de Jorge Benci dizendo, no Brasil de 1700, que senhor e escravo são cabeça e mãos.

O que ora nos importa, porém, é que o corpo político, como o humano, tem uma constituição, e que nesta comparecem os quatro humores da medicina antiga. Humor é um líquido orgânico do corpo humano, que pode ser seroso (aquoso) ou vapor (sutil): vem de chymoi, suco, sabor[7]. Uma ligação de estabelece entre os quatro elementos e os quatro humores do corpo; com os hipocráticos esta se revela, não exatamente uma ligação de elementos mas de qualidades, que se distribuem aos pares, quente versus frio, seco versus úmido[8]. Cada dupla de qualidades corresponde portanto a um elemento tanto quanto a um humor, assim:

        o sangue, que vem do coração, liga-se ao ar (quente e úmido);

        a cólera (bile amarela), que vem do fígado, liga-se ao fogo (quente e seco);  

        a melancolia (bile negra), que vem do baço/estômago, liga-se á terra (seca e fria);[9] 

        a fleuma, que vem do cérebro, liga-se á água (fria e úmida).

        Corpo e mente do homem, para usarmos uma distinção aqui de pouco cabimento, são conjuntamente condicionados por esses quatro fluídos. Num homem são, ideal, ocorreria perfeito equilíbrio dos humores, porém, isso implicaria fosse ele imortal, sem pecado original – o que sabemos impossível, dada a queda adâmica. Assim, cada humor se realça:

 

Numa fase da vida

Estação do ano

Hora do dia

Vento(ou direção do espaço)

Sangue

Juventude

primavera

manhã

Zéfiro (oeste)

Cólera

Maturidade viril

verão

Meio-dia

Euro (leste)

Melancolia

60 anos

Outono

entardecer

Bóreas(norte)

Fleuma

Velhice

Inverno

noite

Austro(sul)

Mas, além disso, cada ser humano, nasce com tal ou qual humor em destaque (Panofsky, p.172): por isso, podemos dizer que existem quatro tipos entre os quais repartir os homens. E, para completar, na Idade Média, desde os árabes, desde o século IX, liga-se a teoria dos humores aos planetas[10]. Não há muita coincidência na fontes, mas a síntese é mais ou menos esta, salientando-se que o fundamental, num quadro como que se segue, é menos  o que está alocado do que os princípios mesmos da alocação:

Humor (suco)

Influência astral

Humor (tipo)

Elemento e caráter

Sangue, o mais propício e nobre (equilíbrio edênico)

a amável Vênus ou, mais frequente, o temperado e benévolo júpiter

-Luxúria (até os defeitos são os mais perdoáveis)

-beleza, felicidade

Ar (úmido quente)

Bile amarela

Marte

Violento,agressivo

Fogo(quente,seco)

Bile negra (ou atrabílis)

Saturno, o antigo deus da terra

Infeliz, sem sorte, sombrio, saturnino: o chumbo

Terra (seca, fria)

Fleuma

Lua, o “astro aquoso” de Shakespeare

Lerdeza, até covardia

Água (fria úmida)

...

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