A ética kantiana
Por: Lays Gabriela • 17/9/2019 • Bibliografia • 2.702 Palavras (11 Páginas) • 213 Visualizações
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Plano de aula
Tópico: A ética kantiana
Problema desenvolvido: O problema da mentira em Sobre um suposto direito de mentir por amor aos homens, de Kant
A crítica de Benjamim Constant a Kant
Kant (1724-1804) começa o seu ensaio com uma citação do texto de Benjamim Constant (1767-1830), intitulado Das reações políticas, ao qual se contrapõe com um tom veemente. Cabe-nos, enquanto leitores, ponderar, ao acompanhar o passo a passo intrincado de seus raciocínios, sobre a radicalidade de suas consequências.
Segundo Constant, se o princípio moral de que se deve dizer a verdade fosse considerado incondicionado e isoladamente, ele tornaria impossível qualquer sociedade. Prova disso são as consequências que Kant extrai dele quando diz, por exemplo, que a mentira seria um crime mesmo se declarada para salvar um amigo e hóspede nosso de assassinos que batem em nossa porta à sua procura.
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“O princípio moral, por exemplo, que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado de maneira absoluta [incondicionada] e isolada, tornaria toda a sociedade impossível. Temos a prova disso nas consequências bem diretas que o filósofo alemão extraiu desse princípio, chegando até mesmo a pretender que, em relação a assassinos que nos perguntassem se o nosso amigo, que eles perseguem, não está refugiado em nossa casa, a mentira seria um crime”.
(Benjamim Constant. “Das reações políticas”, p. 36)
Nota de advertência dos tradutores sobre a imprecisão de Constant ao retomar o exemplo dado por Kant
Segundo os tradutores do ensaio para o português, o exemplo mencionado por Constant não se encontra em nenhum escrito de Kant. O exemplo mais próximo é o que se encontra no § 9 (“Sobre a mentira”), da Metafísica dos Costumes. Primeiros princípios metafísicos da doutrina da virtude, redigido na mesma época do ensaio. O exemplo dado por Kant lá é o de um serviçal que mente para a polícia (e não para assassinos) ao negar que o seu senhor (e não um amigo) esteja em casa. Nos ateremos aqui às consequências que Kant extrai do referido princípio moral tais como ele as apresenta em seu ensaio, ressaltando que ele incorpora aí as referências de Constant sem pôr, ele próprio, em questão a sua fidelidade.
Voltando à crítica de Constant a Kant
Constant relativiza o dever de dizer a verdade, condicionando-o ao direito de alguém à verdade que não prejudica outrem.
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“Dizer a verdade é um dever. O que é um dever? A ideia de dever é inseparável daquela de direitos: um dever é o que, em um ser, corresponde aos direitos de um outro. Lá onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade, portanto, só é um dever em relação àqueles que têm um direito à verdade. Ora, nenhum homem tem direito à verdade que prejudica outrem”.
(Benjamim Constant. “Das reações políticas”, p. 36)
Antes de levantar algumas questões, Kant faz algumas precisões semânticas. Ele considera que as palavras “ter um direito à verdade” não têm sentido. Ter um direito à verdade seria o mesmo que dizer que depende da vontade de alguém que uma dada proposição seja verdadeira ou falsa, o que resultaria em uma lógica singular. Para que tivessem sentido, Kant argumenta, as palavras de Constant deveriam ser reformuladas do seguinte modo: o homem tem um direito à sua própria veracidade (veracitas), isto é, à verdade subjetiva em sua pessoa.
Duas questões levantadas por Kant
Após essas precisões semânticas preliminares, Kant levanta duas questões:
1- Alguém que não pode se abster de dizer “sim” ou “não”, tem o direito de mentir?
Ao dizer isso, Kant abre a prerrogativa de alguém se abster de dizer “sim” ou “não”, dito de outro modo, ele abre a prerrogativa da reserva. Deste modo ele estabelece, ainda que de maneira implícita, uma distinção entre mentir, que é uma espécie de mal positivo, e ser reservado, que é uma espécie de omissão. Um exemplo de reserva: ao ganhar uma gravata muito feia, alguém poderia dizer àquele que o presenteou: -Pôxa, eu nunca ganhei uma gravata como esta! Ao dizer isso, o presenteado, com reserva, omitiria seu descontentamento, mas não mentiria.
2 - Alguém é obrigado, por uma violência ilegítima, a mentir para impedir um crime que ameace a si próprio ou a outrem?
Resposta de Kant às questões levadas:
Não se pode evitar a veracidade nas declarações, pois esta é um dever formal do homem, ou seja, é um dever do homem não só em relação a si mesmo (dever que concerne ao domínio da Ética), mas também em relação a todos e a cada um (dever que concerne ao Direito), por mais que isso cause dano a ele próprio ou a outrem.
Segundo Kant, mesmo que alguém não cometa nenhuma injustiça contra àquele que, injustamente, o força a mentir, comete, quando mente, uma injustiça em relação à parte mais essencial do dever em geral, pois faz com que as declarações em geral percam o seu crédito e com que os direitos fundados em contratos se extingam, o que é uma injustiça cometida contra à humanidade em geral.
Consequência radical da aplicação do princípio: quem mente é responsável pelas consequências que, por um acaso, decorrem de sua mentira
Se alguém, por uma mentira, impede de agir um outro que estava prestes a cometer um assassinato, torna-se responsável, de um ponto de vista jurídico, por todas as consequências que decorrerem daí.
Se, por exemplo, alguém mente a um assassino que lhe pergunta se seu amigo e hóspede está em sua casa, enquanto este foge de lá sem que ninguém o perceba, sendo, em seguida, surpreendido e assassinado pelo assassino, o mentiroso pode ser acusado justamente como autor de sua morte, pois se ele tivesse dito a verdade, talvez o assassino, ao procurar o amigo em sua casa, tivesse sido prezo pelos vizinhos que o tentavam salvar, evitando, deste modo, o crime.
Obs.: apesar da nota de advertência dos tradutores sobre a imprecisão de Constant ao mencionar o exemplo dado por Kant, este, sem qualquer ressalva, retoma o exemplo neste contexto tal como Constant o utiliza.
Outra consequência da aplicação do princípio: quem é verídico não é responsável pelas consequências que, por um acaso, decorrem de sua afirmação verídica
Se alguém se atém à verdade, a justiça pública nada pode lhe fazer, independente das consequências imprevistas que decorrerem daí.
Se, por exemplo, alguém responde honestamente “sim” ao assassino que lhe pergunta se seu amigo e hóspede está em sua casa e este sai de lá sem ser notado, escapando, deste modo, do assassino, a justiça pública nada pode fazer contra ele.
Justificativa kantiana da necessidade da aplicação estrita de um tal princípio:
Kant alega que a veracidade, como base de todos os deveres a serem fundados em contrato, deve ser respeitada, do contrário, a lei de tais deveres será abalada.
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“Aquele que mente, por mais bem intencionado que esteja ao mentir, tem de responder pelas consequências de sua mentira, até mesmo perante o tribunal de justiça civil, e pagar por elas - por mais imprevistas que possam também sempre ser, porque a veracidade é um dever que tem de ser considerado como a base de todos os deveres a serem fundados em um contrato, deveres cuja lei, caso se lhe conceda até mesmo a menor exceção torna-se vacilante e inútil”.
(Kant. Sobre um suposto direito de mentir por amor aos homens, p. 3)
Contra Constant, Kant argumenta que o dever de ser verídico, que ele qualifica como um mandamento sagrado da razão, não pode, em hipótese alguma, ser relativizado. Ele é incondicional.
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“É, portanto, um mandamento sagrado da razão, que ordena incondicionalmente, não ser restringido por nenhuma conveniência: deve-se ser verídico em todas as declarações”.
(Kant. Sobre um suposto direito de mentir por amor aos homens, p. 4)
Tais ideias são temas recorrentes na obra de Kant; temas que encontram a sua expressão mais explícita em alguns de seus escritos de 1796 e 1797: no ensaio Anúncio da próxima conclusão de um tratado de paz perpétua em filosofia (1796), no ensaio que analisamos aqui (1797) e no § 9 (“Sobre a mentira”) da Metafísica dos costumes. Primeiros princípios metafísicos da doutrina da virtude (1797) .
Constant põe em questão a credibilidade das ideias abstratas de Kant
Para Constant, os princípios rigorosos de Kant se perdem em ideias abstratas e irrealizáveis, sendo, por isso, recusáveis.
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“Todas as vezes que um princípio demonstrado como verdadeiro parece inaplicável, é porque ignoramos o princípio intermediário que contém o meio da aplicação”
(Benjamim Constant. “Das reações políticas”, p. 36)
Mencionando a doutrina da igualdade como primeiro elo da cadeia social, Constant se vale do princípio de que o homem só pode se submeter a leis se tiver contribuído com a sua elaboração. Em uma sociedade pouco numerosa, esse princípio pode ser aplicado imediata e diretamente. Em uma sociedade numerosa, entretanto, ele requer um outro princípio, chamado de intermediário, para a sua aplicação. O princípio intermediário consiste na possibilidade da contribuição de todos, seja pessoalmente ou por meio de um representante, para a formação das leis. Quem quisesse aplicar a uma sociedade numerosa o primeiro princípio, sem empregar o intermediário, a levaria à ruína. E se isso acontecesse, o princípio intermediário não seria, mesmo assim, derrubado.
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“(...) que nenhum homem pode estar ligado a leis, a não ser àquelas para cuja elaboração ele contribuiu. Em uma sociedade muito reduzida, esse princípio pode ser aplicado de uma maneira imediata, e não precisa, para tornar-se usual, de princípio intermediário. Mas em uma combinação diferente, em sociedade muito numerosa, é necessário acrescentar um novo princípio, um princípio intermediário àquele que acabamos de citar. Esse princípio intermediário consiste em que os indivíduos podem contribuir para a formação das leis, seja por meio deles mesmos, seja por meio de seus representantes. Quem quisesse aplicar a uma sociedade numerosa o primeiro princípio, sem empregar o intermediário, a levaria infalivelmente à ruína: mas essa ruína, que atestaria unicamente a ignorância ou a inépcia do legislador, nada provaria contra o princípio”
(Benjamim Constant. “Das reações políticas”, p. 35)
Mais adiante, Constant reafirma que um princípio reconhecido como verdadeiro não deve ser abandonado, independente do perigo aparente que nele se encontre. Kant, adiante, voltará a afirmação de Constant contra ele mesmo. Resta ver se Constant reconhece o dever (incondicional) da veracidade como um princípio verdadeiro... O que ele faz é, pelo contrário, pô-lo em questão.
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“Um princípio, reconhecido como verdadeiro, não deve nunca, portanto, ser abandonado, qualquer que seja o perigo aparente que nele se encontre”.
(Benjamim Constant. “Das reações políticas”, p. 37)
Objeção de Kant
Segundo Kant, a despeito do que o bom homem (referência irônica a Constant) diz, ele próprio abandonaria o princípio incondicional da veracidade por causa do perigo que ele acarreta para a sociedade. Ora, ele não poderia descobrir nenhum princípio intermediário que servisse para evitar esse perigo?
Kant ainda justifica: se, no exemplo dado anteriormente, a veracidade da declaração prejudica o morador da casa, isso se dá por um acaso. Se alguém, para beneficiar-se, exige que o outro minta, tem uma pretensão contrária à toda a legalidade.
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“Cada homem, entretanto, tem não apenas um direito, mas até mesmo o mais rigoroso dever à veracidade nas declarações que ele não pode evitar, mesmo que essa veracidade possa prejudicar a ele próprio ou a um outro. Ele mesmo, portanto, não faz com isso propriamente nenhum dano àquele que é lesado, ao contrário, esse dano é causado pelo acaso. Neste caso, ele não é de modo algum livre para escolher, porque a veracidade (caso tenha de falar) é um dever incondicional”.
(Kant. Sobre um suposto direito de mentir por amor aos homens, p. 5)
Portanto, o “filósofo alemão” (Kant faz outra alusão irônica a Constant, que se refere a ele deste modo) não aceita como seu princípio a sentença do “filósofo francês”: “Dizer a verdade só é um dever em relação àquele que tem um direito à verdade”. Pois pensa que a verdade não é um bem cujo direito possa ser concedido a alguém, mas negado a um outro. O dever (e não o direito) de veracidade não faz nenhuma distinção entre pessoas, pois é um dever incondicional, ou seja, válido em todas as circunstâncias.
Em resposta às reações políticas de Constant (lembrando que o título de seu ensaio é “Das reações políticas”), Kant finalmente parte da metafísica do direito (que abstrai de todas as condições da experiência) a um princípio da política (que aplica esses conceitos à experiência)
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Em busca da solução de um problema pertencente à política, Kant, conforme o princípio geral do direito, fornece:
um axioma, ou seja, uma proposição apoditicamente (=de modo evidente, que não precisa de provas) certa, que resulta imediatamente da definição do direito exterior (acordo da liberdade de cada um com a liberdade de todos, segundo uma lei geral);
um postulado (=afirmação admitida sem demonstração prévia) (da lei pública exterior, como vontade de todos, segundo o princípio da igualdade, sem a qual não haveria liberdade para cada um);
um problema que consiste em determinar como ainda conservar em uma sociedade grande a harmonia, segundo os princípios da liberdade e da igualdade (a saber, por meio de um sistema representativo = Kant incorpora o princípio intermediário de Constant).
O axioma, o postulado e o problema constituirão o princípio da política, cuja organização conterá decretos que, derivados do conhecimento empírico dos homens, visam apenas o mecanismo da administração do direito e o modo como ele deve ser instituído. O direito, e esta afirmação é bem kantiana, não tem que adequar-se à política, é a política que tem que adequar-se ao direito.
Kant insere, então, no contexto de sua contra-argumentação, a afirmação de Constant: “um princípio reconhecido como verdadeiro (afirmação a qual ele acrescenta: apodítico e a priori), nunca deve ser abandonado, qualquer que seja o perigo aparente que nele se encontre”.
Conclusão de Kant: pior cometer uma injustiça formaliter do que uma injustiça materialiter
Kant alega que, mais do que compreender o perigo de (casualmente) se prejudicar alguém, deve-se compreender o perigo de se cometer uma injustiça, o que, segundo ele, aconteceria caso se fizesse do dever à veracidade, que é incondicional e condição jurídica suprema, um princípio relativizado, ou ainda, dito kantianamente, um princípio condicionado e subordinado a outras considerações. Pois, mesmo se, por meio da mentira, não se cometa, de fato, injustiça contra alguém, viola-se, em geral, o princípio do direito em relação a todas as declarações inevitavelmente necessárias (comete-se uma injustiça formaliter, embora não materialiter). De acordo com seu raciocínio, isso é muito pior do que praticar uma injustiça contra alguém, pois um tal ato nem sempre pressupõe um princípio, no sujeito, que diz respeito a isso. Pode-se indagar, diante de tais afirmações, se Kant sobrevaloriza o princípio em detrimento dos indivíduos. Ele provavelmente se contraporia a essa indagação afirmando que a preservação do princípio é a salvaguarda, não de um ou alguns indivíduos, mas dos homens em geral (da humanidade).
Quem reflete sobre a pretensão de ser ou não verídico é um mentiroso in potentia
Kant não para aí... Ele argumenta que alguém sequer poderia receber com boa vontade a pergunta feita por um outro sobre a sua pretensão de ser ou não verídico em suas afirmações, pois mostrar-se disposto a refletir sobre possíveis exceções, é, desde já, situar-se como um mentiroso em potência (in potentia). Refletir sobre possíveis exceções é mostrar que não se reconhece a veracidade como um dever em si, é reservar para si exceções a uma regra que, em sua essência, não permite exceções. Portanto - e isto, não à toa, pode ser considerado excessivo -, nem refletir é permitido! O dever de refletir não seria, para Kant, um princípio incondicionado da filosofia! rs
Os princípios intermediários, ao serem aplicados a cada caso, têm de ser determinados pelos princípios juridicamente práticos
Quanto aos princípios intermediários, evocados por Constant em suas reações políticas, reações ao que ele considera como uma “intransigência Kantiana”, Kant conclui que todos os princípios juridicamente práticos têm de conter uma rigorosa verdade, e os princípios intermediários não podem conter senão a mais precisa determinação de sua aplicação aos casos apresentados.
Bibliografia:
CONSTANT, B. “Des réactions politiques”. In De la force du gouvernement actuel de la France. Paris: Éditions Flammarion, (1797) 1988.
(http://classiques.uqac.ca/classiques/constant_benjamin/des_reactions_politiques/reactions_politiques.pdf)
KANT, I. Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens. Trad. Fernando Rey Puente e Theresa Calvet de Magalhães. Belo Horizonte: Editora UFMG, (1797) 2003.
Obs.: a paginação das referências a Kant corresponde à da versão on-line:
(http://www.fafich.ufmg.br/~tcalvet/Kant%20Sobre%20um%20pretenso%20direito%20de%20mentir.pdf)
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