A Filosofia e ensino da filosofia
Por: Edson Francisco António Chauzo • 10/6/2018 • Trabalho acadêmico • 3.763 Palavras (16 Páginas) • 302 Visualizações
Filosofia e ensino da filosofia, hoje
Um fragmento muito conhecido do Protréptico de Aristóteles, chegado até nós em diversas versões doxográficas, diz-nos o seguinte:
“se [algo] é de filosofar, que seja filosofado, se não é de filosofar, que seja filosofado, em todos os casos, é de filosofar”.
O caso de hoje pede, na formulação que me foi proposta, que se filosofe acerca da filosofia. Mais rigorosamente: acerca da filosofia e do seu ensino no marco da actualidade. O enunciado diz, com efeito: “Filosofia e ensino da filosofia, hoje”.
Alguns, mais propensos ao cepticismo e à descrença, respaldados embora em exemplos e ilustrações que se poderiam multiplicar, dirão porventura: pobre filosofia, que já só consegue pensar sobre si própria, que já só consegue alimentar-se da sua própria imagem especular.
No entanto, sem cairmos no narcisismo da autocontemplação ou na autofagia de cavilações subtis, talvez consigamos contribuir para uma elucidaçãode questões que nos preocupam e que seguramente põem em causa o nosso "status" profissional (de docentes) e, mais amplamente, existencial (de pensadores filósofos).
Gostamos de dizer - e afigura-se-me correcto - que o perguntar é constitutivo da atitude e da actividade filosofante.
Já não gostamos tanto é de ser perguntados acerca da filosofia.
A filosofia põe questões e põe em questão.
Mas também é certo particularmente em determinadas conjunturas do acontecer histórico - que a filosofia é questionada e é posta em questão.
Hoje, Há quem ponha não só interrogações, mas sobretudo reticências, não apenas à filosofia, mas sobremaneira ao seu ensino.
A reticência adianta-se, aliás, à interrogação e pragmaticamente pro põe-se economizar os incómodos da pesquisa.
O ataque da questão pelo ângulo do ensino visa a sua expressão institucional imediata e descarta ou adia enfoques mais aprofundados "abstractamente" perturbadores, ou como tal considerados.
As reticências que se adiantam quanto ao ensino da filosofia são:
- de princípio - quanto à possibilidade “transcendental” ou fáctica do seu magistério;
- de meio - quanto à sua integração no sistema escolar geral: secundário ou universitário;
- de fim - quanto à utilidade, função e eventual ajustamento aos supostos ditames da actualidade (moderna ou “modernaça”, isto é, “pós-moderna )
Vendo bem, não são propriamente problemas só de hoje. Poderia argumentar-se, aduzindo como convém lauta cópia de documentos e provas, que também são ou foram problemas de ontem, e de anteontem.
Sócrates, no Eutidemo, exortava Críton a que abandonasse os que exercem ou os que se ocupam da filosofia, fossem eles de boa qualidade ou de má qualidade. Esse apartamento da frequentação dos oficialmente filósofos não o deveria impedir, porém, de pôr à prova bela e boamente, a coisa mesmo o objecto mesmo da actividade deles.
(A quantos não agradaria glosar, e quiçá citar até em algum discurso de posse ou equivalente solenidade oratória. Claro, teriam eles próprios, ou por interposto secretário, de começar por ter lido Platão e por torcer em seguida bastante o sentido explícito da exortação socrática. No entanto, se a primeira tarefa deixa entrever penosas dificuldades, a segunda encontra-se por certo muito facilitada pela rotina de procedimentos análogos com que somos infeliz e habitualmente confrontados.
Por seu turno, o Impiedoso, mas piadético, Aristóteles, para além de designar a morada dos filósofos como frontistério/pensadouro das almas sabias, não deixa de mimosear Sócrates com epítetos do género: sacerdote de banalidades subtilíssimas, isto é, da investigação dos intestinos, uma vez que não cessa de sondar as suas próprias entranhas.
Não se pense, porém, que a reticência e a incompreensão foce à filosofia se circunscreveram apenas à crítica mais ou menos vulgar e grosseira de uma determinada imagem social dos "sofistas".
Nicolau de Cusa, reportando-se aos debates medievais entre dialécticos (filósofos) e antidialécticos, conta - com fina ironia - que Santo Ambrósio teria mesmo enriquecido as suas ladainhas com esta primorosa imprecação: "A dialecticis libera nos domine!
(Consta que ainda hoje um destacamento de insuspeitados seguidores de Santo Ambrósio está na origem da resistência tenaz que se move em alguns departamentos contra a introdução da cadeira de Dialéctica no elenco cias disciplinas de Filosofia).
Comparado com tudo isto e o muito mais que neste mesmo sentido aqui ainda se poderia evocar, as conhecidas invectivas de Schopenhauer contra a filosofia como ganha-pão (Brotgewerbe), contra os negociantes da cátedra (Geschaítsmanner der Katheder) que com mulher e filhos (mit Weib und Kind) têm de viver da filosofia (für die Philosophie), contra os "Phi losophen" que não passam de "Professoren der Philosophie" e os "Professoren der Philosophie" que não são "Philosophen", etc., perdem muito do seu inicial lustro de novidade.
Comparado com tudo isto, Nietzsche – tão celebrado a propósito de algumas argutas observações sias acerca do estado de mumificação da filosofia professoral ("Philosoph sein, Mumie sein) com a sua arrastada profissão de fé no Monotono-Theismus e a sua superlativa estupidez (Duinmheit faz figura de epígono e Pierre Thuillier então, com o seu publicitado Socrate fonctionnaire, mostra-se, a contra-gosto por certo, mero epigonal servente.
Sem dúvida que numa das suas Reflexionen Kant também escreveu:
"Man kann keine Philosophie, wohl aber Philosophieren lernen “nao se pode aprender fllosoiia nenhuma, mas sim a filosofar”.
No contexto kantiano, nitidamente perceptível em diferentes’ escritos seus, o sentido da máxima e muito claro e não vai propriamente na direcção em que alguns subsequentemente o trataram de interpretar.
Para Kant, não se pode ensinar filosofia, mas a filosofar, por um lado, poque ainda ninguém está integralmente de posse dela: dai a pergunta que a seu respeito se faz na Critica da Razão Pura. “Onde está ela, quem a tem na sua posse e em que se fela conhecer?”.
A filosofia como sistema de conhecimentos filosóficos e’ ainda, segundo Kant, uma ideia a realizar.
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