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Desconstruindo Huntington

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Por:   •  12/4/2014  •  2.465 Palavras (10 Páginas)  •  361 Visualizações

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Desconstruindo Huntington

Gildo Marçal Brandão - gmb@usp.br

República, nov. 2001, n. 61

Publicado em Gramsci e o Brasil – www.gramsci.org

Se em vez de terrorista, Osama Bin Laden fosse um acadêmico de prestígio, um

frio analista da política mundial, ele teria escrito O Choque de Civilizações, de

Samuel P. Huntington [1]. Podemos pegar o livro e lê-lo como um espelho

imaginário. Invertidos os juízos de valor sobre a civilização de cada um, o

arcabouço metafísico subjacente à análise permaneceria igual: as noções de

identidade e superioridade da (sua) civilização, o direito à guerra, justa, é claro,

pois se trata de preservação de sua própria cultura e do Bem que ela encarna, o direito à vingança pelos sofrimentos infligidos pela outra. Explicitamente, ambos

veriam no sangue e na religião os principais motores das civilizações. Ambos

considerariam todas elas como organismos coesos, singularíssimos e, no limite,

inimigos mortais uma das outras. Ambos criticariam o hedonismo, a

secularização, a corrupção e o amolecimento atual de seus povos, propondo a

regeneração moral pelo retorno às fontes profundas - religiosas, jamais laicas

nem racionais - às quais cada um deles deve origem, existência e consciência.

Mas Osama Bin Laden não é um acadêmico. É um homem do dinheiro, um

bourgeois conquérant, filho das novas classes dominantes do mundo árabe e do

circuito do capital globalizado. Homem da cultura de massa, tem senso de

espetáculo suficiente para monopolizar a voz dos que não têm voz e

acumularam séculos de ressentimento. Crente, está imune às dúvidas dos

pobres mortais e disposto a tudo para fazer valer os ditames de sua fé. Foi, além

disso, armado pelo próprio Diabo Azul para lutar contra o Diabo Vermelho - será

surpreendente que, após liquidar o segundo, seu Deus queira arrebentar o

primeiro? Finalmente, é um homem da práxis, um organizador. Com essas

qualidades, haveria alguém mais aparelhado para levar à prática - com a

inestimável colaboração de George W. Bush, não nos esqueçamos - o que o Dr.

Strangelove de plantão teoriza?

É a prova do pudim da teoria deste, por assim dizer. De fato, sua ação nada teve de tresloucada, mas foi o produto de uma escolha racional, bem fundamentada, a ponto de atingir vários alvos ao mesmo tempo: a) o coração do Império e seus símbolos de poder, espalhando o pânico entre os dirigentes e a população e criando condições para a militarização dessas sociedades de infiéis; b) os “quintas-colunas” da cultura islâmica, isto é, os governos corruptos e vacilantes que o Inimigo sustenta no próprio Oriente; c) o escanteamento dos líderes palestinos moderados e “traidores”; e d) sem esquecer o ganho suplementar que foi jogar na defensiva todos esses movimentos e militantes liberais, socialistas, comunistas, ambientalistas, etc., laicos e mesmo religiosos, dos quatro cantos do mundo que acreditam na razão, no internacionalismo, na possibilidade do diálogo e em valores universais. Profecia autocumprida, sua ação deu imediata aparência de verdade à tese de Huntington, levando-a, ato contínuo, a ser aceita como boa descrição da realidade e linguagem do dia-a-dia da política

internacional.

Samuel P. Huntington, em contrapartida, não é um militante xiita, mas um

simpático professor de Harvard. Um cientista, embora à diferença desses

liberais weberianos, jamais tenha acreditado para valer na separação radical

entre ciência e política, ciência e valores. Ciência é prerrogativa de ocidental e

ciência boa é aquela que confirma os valores e leva à engenharia institucional.

Engenheiro institucional que se preza, entretanto, não suja as mãos. É consultor,

assessor, estrategista, capa preta. Aponta a necessidade e os meios de fazer a

guerra se se quiser atingir a paz, mas deixa o trabalho sujo para os Leitão de

Abreu, os George W. Bush e os Bin Laden da vida.

AS TESES

Nessa época de “crise dos grandes paradigmas” e das “grandes teorias”, eis que

temos um novo paradigma, o retorno a uma grande teoria. Nessa época de “fim

da história”, eis que a própria direita (para alívio de uma certa esquerda, que vê

nisso prova de que estava certa) vem dizer que a história não acabou, que o

mundo continua movido a conflitos sangrentos, que a globalização é ilusória e

que a “paz perpétua” é conversa para boi dormir. Nessa época do “fim das

ideologias”, eis que se cria uma nova ideologia. Como costuma ser toda

ideologia, também esta é uma simplificação grosseira da realidade e um lerolero

convincente para os incautos.

Como se sabe, sua tese principal, da qual derivam todas as outras, é que “a

fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será essencialmente

ideológica ou essencialmente econômica. As grandes divisões na humanidade e

a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. As nações-Estados

continuarão

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