O SAGRADO E O PROFANO NAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICO-LITERÁRIAS POPULARES DO ALTO-OSTE POTIGUAR
Por: augustonog • 24/8/2015 • Relatório de pesquisa • 1.870 Palavras (8 Páginas) • 324 Visualizações
O SAGRADO E O PROFANO NAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICO-LITERÁRIAS POPULARES DO ALTO-OSTE POTIGUAR
O espaço, sob a ótica do homem religioso, não apresenta, na totalidade de sua extensão, uma uniformidade. É constituído, sim, por falências e interrupções, com áreas assinaladas por variantes de ordem qualitativa que não dispõem de quaisquer semelhanças com esse ambiente sagrado, o qual é vigoroso, genuíno, e capaz de exprimir, de maneira sensível, valores susceptíveis à apreciação humana. Paralelamente, as concepções de identidade, como a do sujeito do Iluminismo – indivíduo inteiramente unificado, racional, incorruptível e individualista –, também se esfacelam, e como produto de tal ruína, surge a imagem do sujeito pós-moderno, detentor de uma identidade instável, descentrada, que origina diferentes formas de ver e sentir o mundo em que vive, bem como tudo aquilo que lhe diz respeito.
A manifestação do sagrado (hierofania) expõe, ostensivamente, o deslocamento do indivíduo, o qual se refere a uma espécie de crise existencial e também religiosa, já que detém um caráter transcendental, sendo vista como uma revelação de outra dimensão, trans-humana e, portanto, inacessível. A partir da hierofania, ocorre uma ruptura na regularidade do espaço, descobrindo, na complexidade irrestrita e indispensável do sujeito, como afirma Eliade (2010, p. 26), “um ponto fixo” absoluto, um “Centro”. O reconhecimento desse “mundo sagrado” confere uma legitimidade existencial ao homem religioso, que passa a orientar o conjunto de suas práticas a partir de tal ponto fixo, negando, por vezes, uma realidade profana, onde o viver real inexiste; ao mesmo passo que se identifica com a experiência de vida do homem que habita um universo totalmente dessacralizado.
O homem, movido pelo interesse de gerir suas próprias inventivas religiosas, de revelar o sagrado a partir de vivências mais palpáveis, distancia-se, por vezes, do grande Deus celeste, o Ser supremo e onipotente. Essa hierofonia, que chega a ser confundida com a vida de tão enleada que se encontra com essa, revela outras entidades detentoras de um poderio igual ou mesmo superior ao do Criador, frente ao qual se mostram, claramente, de mais fácil e rápido acesso, além da sua expressiva superioridade dinamista. Nesse sentido, as histórias relatadas pelo pesquisado revelam eventuais associações simbólicas de uma quase apologia à figura do Satanás, tido, para o Cristianismo, como o grande adversário ou inimigo de Deus e dos homens: “Já ouviu falar o negócio de oração de cabra presa, num já? [pic 1](dirigindo-se a Cleonildo). (...) Quando eu comecei a rezar lá o negócio lá e fazer o negócio lá, ói, véi [pic 2](aponta para o céu), apresentou um gato meimo em cima, o gato. (...) Aí o gato começou a dar uns miado, aí o gato se escorregou da peda. Quando ele descia as unha assim [pic 3](imita as garras do bichano), vinha descendo, parecia que vinha riscando a parede, vinha cubrindo fogo”. Contudo, ainda que se satisfaçam das benfeitorias concedidas por tais poderosas divindades (fortuna, plenitude vital etc.), ainda são os deuses de estrutura celeste os verdadeiros mediadores da redenção terrena. Fala-se, pois, de um sincretismo religioso, em que o sagrado e o profano partilham, quase que simultaneamente, um mesmo espaço na experiência de vida do homem, tido aqui como (a)religioso. Tal confluência faz-se, por muitas vezes, presentes nas histórias narradas por Seu Siríaco: “Eu só fui só entrar pra dentro, peguei ali [pic 4](aponta, mais uma vez, para trás) a... os ... livro de macumba lá que [?] ((risos))” e “a derradeira, a derradeira espetaco qu’eu fiz na minha vida. Eu deixei de mão. Abandonei tudo dessa vez. Pronto!”.
Mesmo quando a vida religiosa não se encontra sob o domínio imediato dos deuses celestes, a totalidade dos símbolos que caracterizam o sobre-humano colabora para a conservação de uma memória coletiva acerca do sagrado, ainda que o homem-moderno a-religioso busque, forçoso e erroneamente, repelir toda e qualquer invocação à transcendência. Esses símbolos, além de cingirem o conjunto das práticas religiosas, apresentam, ademais, em um plano concreto não imaginário, uma utilidade prática de natureza, muitas vezes, quase que mágica: “aquela hóstia ali evitava de você morrer, evitava de tiro, de faca... Aí, quando fosse pra morrer, ai tinha que o padre vim e tirar [pic 5](coloca a mão onde estaria a hóstia, conforme a simulação anterior)”.
Esse sistema de signos é também o responsável por fundar uma identidade onipresente acerca de Deus, enquanto ser absoluto, temerário, incontestável e acima de tudo perfeito, responsável por conceber o universo, características manifestadas na fala de Seu Siríaco: “é artimanha (do demônio). A gente tem que Jesus né vingativo não. É a natureza”. Eliade (2010, p. 109) diz que “o simbolismo do ‘Centro do Mundo’ também ilustra a importância do simbolismo religioso: é num ‘Centro’ que se efetua a comunicação com o Céu, e esta constitui a imagem exemplar da transcendência”. Ou seja, a comunicação do Centro com o Céu permite uma ligação direta com o transcendente, impedindo que o homem viva no pernicioso “Caos”. Assim, ao se perder tal contato com o sobre-humano, a existência do mundo já não é mais exequível; o que pode ser corroborado pela narrativa de Seu Siríaco: “o que desligar na Terra eu desligo no céu”.
A figura feminina encontra-se relacionada, simbolicamente, com a própria Terra, de modo que a promanação, em uma perspectiva humana, corresponde a uma espécie de ramificação da fecundidade telúrica. Semelhantemente, ao se levar em conta o panorama religioso, a sacralidade da mulher está sujeita à da Terra. Assim, a totalidade das experiências concernentes à fecundidade apresenta um protótipo cósmico, que é o da Terra Master, a Mãe Universal, a qual, em muitas religiões, é capaz de conceber sozinha, sem haver a necessidade de outrem. Tudo isso revela, pois, a importância destinada à mulher, que se deleita do valor mágico-religioso e mesmo social que lhe é concedido, transformando-se, dessa forma, em uma das numerosas manifestações do sagrado, uma vez que diz respeito à imagem fiel da perfeição divina, capaz de dar origem a uma nova vida. As narrativas de Seu Siríaco expõem, em diversos momentos, essa visão sacra assinalada por uma expressiva compaixão e estima em relação à figura feminina, a qual integra incidentes onde as protagonistas, célebres personagens bíblicas, são representadas de uma maneira um tanto quanto burlesca, concebendo, assim, um enredo totalmente a-religioso, oriundo da intercepção do cristianismo católico com a liberdade de criação do imaginário popular: “Ói, Sinhô, acode a muié![pic 6](aponta em direção ao lugar onde estaria a mulher). Muiézinha boa, que deu janta a nóis, ói, tá sofrendo e... Tá... N-num faça isso não! Num deixe a muié sofrê não!”. Para o pesquisado, a imagem da mulher é de tão grande relevância que a presença de uma única pessoa do sexo feminino no grupo de pesquisa conduz-lhe a proferir uma oração, de maneira especial, para ela: “Minha beata, Santa Catarina, que sois benta como o Sol, formosa como a Lua, linda como as estrelas. Entrastes na casa do padre Santuário com mais de 50000 homens, assim peço a vós, senhora: trazei Fulano de volta para mim, que de minha mão se sumiu. Fulana ou Fulano, que Fulano, o Fulano... não possa comer, nem beber, nem dormir, nem ter sossego, enquanto comigo não vier falar. Com tanto soubere, me dá o que tiver e me amar em todas as mulheres do mundo e eu para ti parecer uma rosa fresca e bela”. A posição de destaque da mulher nos enredos de Seu Siríaco pode dá-se também pelo seu poder de sacralização, pois foi a partir dela que se tornou possível converter e salvar almas até então perdidas para Cristo, à semelhança de São Cipriano: “A última muié que ele (São Cipriano) quis era a beata Justina, né? E pelejava. Nunca pôde laçar ela. Cê acredita? Nunca pôde laçar ela. Pelejou, e lai vai, e mexeu com tudo que foi de coisa. (...) Até que o cão findou dizendo pra ele: ‘óia, Cipriano, deixa essa muié de mão! Essa muié é do Manel. Por caridade!’. ‘Que Manel?’. ‘Manel do Nascimento, Jesus’ [pic 7](aponta para a esquerda). ‘E tem esse ôto fora você?’. ‘Tem’. ‘Ah, vou pronde tá ele. Você num seive não”. Aí deixou, aí foi escrever só o bem até o final, né?
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