A Hannah Arendt
Por: Olha já • 22/8/2019 • Resenha • 1.304 Palavras (6 Páginas) • 109 Visualizações
O labor
Trabalho e labor são tidos por Arendt como elementos diferentes na condição humana. John Locke (1632-1704), no Segundo Tratado sobre o governo, seção 27, usa os dois termos diferenciando-os: “o labor do nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”. Todavia, essa distinção quase não é encontrada na tradição pré-moderna e esses termos normalmente são usados como significando a mesma coisa. Segundo a pensadora, pode-se recorrer aqui à linguagem, sobretudo a linguagem ordinária, como depositária de experiências, de atividades e articulações (AMIEL, 1997, p. 61). O fato de que em diversas línguas existem “duas palavras de etimologia diferente para designar o que para nós, hoje, é a mesma atividade” (ARENDT, 2003, p. 90) é testemunho que aponta para um entendimento diferente em relação a esses dois conceitos.
O labor, segundo S. Schio, é a “mais natural, a menos mundana e a mais provada das atividades” (2006, p. 164). Ele corresponde à manutenção do processo biológico do corpo humano e, portanto, não possui nem começo e nem fim. A sua função não é produzir objetos, embora isso até possa ocorrer esporadicamente. O labor ocupa-se com os meios da própria reprodução da vida: ocupa-se em produzir vida. Na antiguidade, os responsáveis por essa dimensão da vida eram os escravos. Hannah Arendt explica que os historiadores costumam afirmar que o labor era visto com desprezo por ser realizado pelos escravos. Todavia, para os antigos, o raciocínio era outro. A escravidão se justificava e era defendida por ser indispensável que determinados indivíduos cuidassem das necessidades da vida. A escravidão estava, portanto, sujeita à própria condição da vida humana. A liberdade só podia ser conquistada nessas condições: subjugando outros para que ficassem escravos de suas próprias necessidades e de seus senhores.
A existência de escravos na civilização berço da filosofia, portanto, não tinha por objetivo a obtenção de mão de obra barata, como ocorre com a escravidão recente, por exemplo. Seu objetivo era possibilitar a eliminação do ônus que as carências elementares da vida, como fome e sede, impõem a todos. Enfim, os escravos eram os responsáveis por garantir apenas o consumo da casa e não produziam em grande escala para a sociedade em geral.
A distinção entre o trabalho e o labor, confundida ou ignorada ao longo do pensamento político e, como foi dito, conservada por muitos idiomas, torna-se “apenas uma diferença de grau quando não se leva em conta o caráter da coisa produzida”. Um exemplo disto emerge do olhar para o pão e para a mesa. O pão que normalmente permanece no mundo por um dia e a mesa que pode ultrapassar uma geração. Essa distinção entre as coisas produzidas, frutos do labore do trabalho, respectivamente, é mais óbvia do que a tentativa de diferenciação que partisse do padeiro e do marceneiro. Essa diferença entre trabalho e labor mostra que são os produtos do primeiro que garantem a permanência e durabilidade das coisas do mundo. E entre esses produtos é que se encontram os bens necessários a sobrevivência dos indivíduos. Ou seja, entre os frutos do labor – que não têm uma estabilidade própria e que surgem e logo desaparecem por serem consumidos – estão os produtos do trabalho que dão familiaridade e sentido de permanência dos homens com as coisas e entre si.
Os frutos produzidos pelo animal laborans – animal que labora – são geralmente de curta duração. A natureza tem um ciclo em que as coisas são produzidas, mesmo que pelo homem, e logo consumidas. Mesmo o que é chamado de nascimento e morte, para esse ciclo natural não existe. No mundo humano é que esse movimento aparece como crescimento e declínio: “somente quando ingressam no mundo feito pelo homem podem os processos da natureza ser descritos como crescimento e declínio”. Diferente do trabalho, que termina quando o objeto está pronto, o labor é incessante e acontece como movimento infinitamente repetitivo. O fim só chega quando acontece a morte biológica desse organismo vivo.
O trabalho
Na pólis grega, o homem tinha uma vida no lar, junto aos seus familiares, mas era certo que os filósofos sustentavam que a liberdade se encontrava de forma exclusiva na vida política, sendo que esta liberdade somente poderia de fato ser exercida pelo governante do lar e quando este deixava o lar para ingressar na vida política, único momento em que todos que participavam da vida política eram iguais, portanto, livres. Desta noção de igualdade, pressupõe de outro lado, o conceito de desigualdade, na medida em que todos aqueles que não participavam da vida política não eram livre e, portanto, desiguais aos homens livres. Desta diferenciação social, tem-se que os homens livres não trabalham, pois utilizam seu tempo para as coisas da pólis e da política, havendo àqueles que são servos e que, portanto, trabalham para servir ao lar e à cidade. Nesta medida, o privado e o público passaram a existir de forma muito antagônica, pois o homem mantinha uma vida privada no lar, onde não era livre, e ao adentrar no seio do local público, para exercer a vida política junto dos seus iguais, tornava-se livre. Portanto, poucos eram os homens que tinham acesso ao que era público, e mesmo assim, não o tempo todo; sendo certo que a maioria dos homens se mantinham no que era considerado privado, sem acesso ao público, tão-somente trabalhando fisicamente, o que era considerado uma aproximação dos animais, pois “trabalhar significava ser escravizado pela necessidade, e essa escravização era inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem dominados pelas necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade dominando outros que eles, à força, sujeitavam à necessidade. No decorrer dos séculos esta situação não se alterou muito, uma vez que na Idade Média ainda persistia um abismo entre o público e o privado, correspondendo o público com o religioso extramundano e o privado com o mundo mundano feudal, em que o homem permanecia vinculado à terra, ao senhor feudal e ao seu lar, consequentemente, não existia domínio público acessível aos homens.
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