Laudo Pericial Antropológico

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – DCJ

DIREITO DOS GRUPOS SOCIALMENTE VULNERÁVEIS

SAMUEL ALMEIDA CAMBOIM

FICHAMENTO SOBRE LAUDO PERICIAL ANTROPOLÓGICO PARA FINS DE ESCLARECIMENTO DO GRAU DE INIMPUTABILIDADE DE INDÍGENAS DA ETNIA GUARANI - KAIOWA

SANTA RITA

2016

FICHAMENTO SOBRE LAUDO PERICIAL ANTROPOLÓGICO PARA FINS DE ESCLARECIMENTO DO GRAU DE INIMPUTABILIDADE DE INDÍGENAS DA ETNIA GUARANI - KAIOWA

Preliminarmente, incumbe ressalvar que os índios da etnia Guarani-Kaiowa encontram-se inseridos na sociedade brasileira através de uma lógica de dominação, que impõe seus métodos, sistema de valores e sua cosmovisão aos povos indígenas sem considerar as especificidades culturais que lhes são próprias. Ademais, insta registrar que o Brasil mantém uma tradição histórica de esbulho territorial dos povos indígenas, o qual contribui para a corrosão do patrimônio cultural destes, intimamente ligados à noção de propriedade coletiva da terra, da ancestralidade e da tradição oral.

Com relação à assimilação dos valores e conceitos da sociedade brasileira, é necessário verificar que os Guarani-Kaiowa se circunscrevem em uma tradição de conhecimento diametralmente oposta a das sociedades cristãs ocidentais. Isso, no entanto, não significa que a cultura silvícola não englobe elementos da cultura “branca”, mas, que, ao contrário, os valores introduzidos na cultura indígena assumem outro significado, sobretudo, nos quesitos referentes à moral, à ética e à culpabilidade. Por exemplo, os índios Guarani Kaiowa concebem de modo bastante negativo a questão da violência, priorizando o amor mútuo na comunidade política local. Contudo, quando ameaçados por tribos e famílias inimigas, a violência não é vista como algo negativo. Quanto à noção de culpa, por seu turno, os kaiowa partem de um pressuposto de “purismo inato” do ser humano. Todas as condutas negativas ou ilícitas são atribuídas a elementos externos, como a feitiçaria e espíritos malignos, que agem neutralizando ou influenciando a vontade do agente. Essa avaliação ética e moral dos guarani- kaiowa é especialmente relevante para o exame do discernimento do caráter criminoso de uma conduta por parte dos índios. Sendo a ação do sujeito determinada pela influência de um espírito maligno, ocorre a quebra do equilíbrio individual, familiar e comunitário, de modo que o indivíduo passa a ser considerado doente, em estado de impureza espiritual.

Em linhas gerais, sendo a alma da pessoa, a priori, pura, as ações de caráter ilícito não poderiam jamais ser atribuídas a ela, mas à força de espíritos que dela se apoderam , mitigando a autonomia da vontade da pessoa. Nesse diapasão, podemos concluir que inexiste sentimento de culpa entre os guarani-kaiowá, pelo menos não nos moldes da tradição ocidental cristã. Bem assim, as punições aplicadas aos infratores nunca são dirigidas às pessoas deles, propriamente ditas, mas como remédio para neutralizar ações de espíritos e feitiçarias.

Por outro lado, quando diante de ameaças que afetem a estabilidade da vida em comunidade, ações violentas ou agressivas são vistas como necessárias pelos guarani-kaiowas. Nas décadas de 40 e 50, fortes conflitos ainda existiam entre clãs rivais com acusações mútuas de feitiçaria. No que diz respeito aos conflitos interéticos, vale dizer, aqueles travados entre índios e não índios, os kaiowas guardam reminiscências de conflitos com os chamados “homens-onças”, seres extremamente agressivos, “povoadores do mato”. Segundo os indígenas, os homens onças teriam cabeça de onças e corpo humano, fazendo alusão à figuras antropomórficas para explicar a ação colonizadora do homem branco. Deve-se salientar o papel exercido pela onça na cultura Guarani-Kaiowá, vista como um animal mortal, furtivo, ardiloso, que embosca.