O Direito Processual Penal
Por: Catia Borges • 28/3/2017 • Trabalho acadêmico • 14.847 Palavras (60 Páginas) • 244 Visualizações
Pg.16 Isaac SABBÁ GUIMARÃES 16 O Direito – e, obviamente, o Direito Processual Penal –, carrega preceitos jurídicos de natureza positiva e normativa, social e geral4, pres-crevendo regras que visam a tornar o convívio e as relações entre os indi-víduos da comunidade aceitáveis e o mais idealmente livres de conflitos5. Por isso, também se diz que a regra (positiva) do Direito prefigura o de-ver-ser que vincula os membros da comunidade. Mas quando se nega, por meio da conduta diversa à prescrição legal, o dever-ser, ou seja, quando se desobedece à regra, o Direito já terá estabelecido fórmulas para a dis-solução problemática, que são exigíveis, impositivas e coercivas. Assim, haveremos de conceder que o Direito prescreve comandos de caráter ge-ral e abstrato, que requerem condutas a eles vinculadas, não admitindo vias facultativas; e, para o caso de desobediência, estabelece hipóteses de castigos6, ou consequências jurídicas. Mas esta é apenas uma ligeira ideia acerca de um fenômeno so-cial que, exatamente por isso, é carregado de imensa complexidade. Afi-nal, o fato de a auctoritas fazer escolhas sobre o que prescrever como dever-ser em normas jurídico-positivas, não pode dar a dimensão total doDireito, porque ele está longe de caber no esquematismo purificador kel-seniano7, que deixava de contemplar aspectos metajurídicos que, a todasas luzes, se vincam na experiência (ou na vida) do Direito. A pretensão autopoiética de criação do Direito, presidida por uma Grundnorm, a Norma Fundamental, e seminal para todas as demais, por um lado, não extrapola dos níveis hipotéticos para os de facticidade da vida do Direito, enquanto, por outro, um acurado exame crítico do purismo proposto por Kelsen, conduzirá ao risco de se o reduzir a uma situação de mero decisio-nismo. Mas mesmo a deliberação da auctoritas, no fundo, bem no fundo, é condicionada por inumeráveis fatores ligados à circunstância histórico-político-econômico-cultural-científico-jurídica. Por outras palavras, que-remos referir que o corpus iuris mantém intercomunicatividade com as-pectos políticos, econômicos, culturais, científicos e jurídicos, historica-mente delimitados; de forma que sua redefinição (ou renovação), poderá também ser desencadeada pela evolução histórica destes aspectos. 4 RADBRUCH,
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Se a situação é tal e qual imaginamos, então o Direito antes deprescrever regras de conduta de validade universal, estará irremediavel-mente adstrito ao relativismo do hic et nunc, que forma um caudal de ideias impermeável às achegas do universalismo e da atemporalidade8. De forma mais clara, podemos dizer exemplificativamente, sem muita margem para dúvidas, que a nós ocidentais parecem absurdamente injus-tas algumas regras de Direito tradicional, como a de alguns povos africa-nos que submetem as adolescentes à excisão clitoriana; ou a de abandono de idosos para a espera da morte, como ainda era praticado por parte dos japoneses em pleno século XX e por siberianos do norte; a discriminação dos intocáveis pelas pessoas de casta, na Índia; a lapidação de adúlteros, pelos muçulmanos que adotam a lei da Sharia. E, obviamente, mesmo entre ocidentais encontraremos amplo espectro de matizes do Direito, que causarão estranhamentos, bastando pensar-se que a visão quaker dos norte-americanos acerca de lei e ordem não é bem assimilada pelos euro-peus. A variabilidade do Direito naquele domínio presidido pelo relati-vismo (ou pelas situações de contextos fechados, como diria Popper9), vem confirmar a assertiva de que, embora as categorias estejam imbrica-das, Direito e Justiça são ideias que não se confundem. Diante deste quadro, será lícito estabelecer um ponto de interseção entre a ideia de realização do Direito e a procura da Jus-tiça, especialmente quando se percebe que a primeira é categoria melhor conformada a uma razão prática, relacionada com múltiplos fatores data-dos e, portanto, melhor perceptíveis pelo estudioso que reflete sobre cir-cunstância histórico-político-econômico-cultural-científico-jurídica, ao
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passo que a segunda paira sobre o plano metafísico, parecendo, em certos momentos, matéria indestrinçável? A antiga noção de Justiça distributiva, eternizada na fórmula de Ulpiano, de acordo com a qual sua efetivação está no ius suum cuique tribuere10, oferece-nos já algumas pistas sobre como devemos entender a relação entre o Direito e a Justiça. Em primeiro lugar, há de se destacar que a pretensão de Justiça está subordinada a um mandamento universal e eterno. É a constans et perpetua voluntas inerente à consciência da socie-dade de fundar-se de forma ordenada, que lhe permita o alcance do bem comum e as condições para uma vida o mais idealmente livre de conflitos desagregadores, o que também convoca o estabelecimento de um ambien-te de paz e segurança11. Em um segundo plano, temos de conceder que a Justiça constitui um imperativo de dar o Direito que cabe a cada um, não sendo por isso estranho ao seu conceito um pressuposto ordenador. Daí o entendimento de que, por um lado, inscreva-se em seu substrato um orde-namento jurídico justo, capaz de “regular a vida social no sentido de colocar as coisas no lugar que lhes corresponde, por sua própria nature-za ou por atribuição humana”12. Por outro, que o locus do Direito justose evidencie nas operações jurídico-jurisdicionais, de concreção da norma normada ao caso concreto e individuado. Com isso queremos dizer que o Juiz, ao interpretar a regra ou o comando jurídico positivado em lei, deve transpor seu âmbito abstrato e genérico, para reinscrevê-lo num caso con-creto e individuado, dessa forma criando uma norma positiva que deve, contudo, obedecer ao critério da justeza. Ao chegarmos a este entrecruzamento das ideias de Direito e Justiça, tem-se a impressão de que, a partir desse ponto, em vez de des-crevermos a questão problemática em um vetor, percorremo-la eliptica-mente, já que muito fica por dizer acerca do Justo e do Bom. Afinal, su-pondo que o Juiz é, como qualquer pessoa, um ser falível, podendo, por isso, errar ao formar juízos de valor e um convencimento acerca do que lhe é posto à apreciação, como saberemos que, ao positivar a norma jurí-
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dica para um caso concreto e individuado, objetivou a Justiça (ou, ao menos, procurou solucionar o problema com justeza)? Pode fazer-se uma tentativa de dissolução problemática se o ra-ciocínio for desenvolvido exatamente a partir da oposição do caráter me-tafísico da categoria Justiça ao aspecto de (sempre potencial) concreção que encontramos na ideia do Direito. Servem a este propósito, segundo entendemos, as reflexões do filósofo estruturalista Jacques Derrida, en-contradas em seu ensaio Do Direito à Justiça13. Numa primeira aproximação à questão, Derrida alerta-nos para o erro do raciocínio de equivalência entre as duas categorias, pois, en-quanto o Direito é expressão de força, violência e forma, a Justiça é algo absolutamente inextrincável14. O Direito é um imperativo que se cumpre, sendo o caso, pelo uso da coerção e, não raras vezes, pela substantivação de atos de violência15, que não serão, no entanto, arbitrários, ilegítimos ou abusivos se forem cumpridos, de acordo com uma perspectiva puramente formal em que se examine o caso concreto, seguindo-se o que as regras positivadas na Lei dispõem para seu cabimento. Assim, o cumprimento de busca e apreensão dependerá de uma ordem emanada de autoridade judicial competente, que deverá decidir fundamentadamente objetivando os fins determinados pelo art. 240, do CPP; e, ainda, assim, delimitado por um juízo de adequação, necessidade e proporcionalidade, para que o ato não implique em indevida supressão de bens jurídico-constitucionalmente pro-tegidos. Quanto à Justiça, diz o filósofo franco-argelino, não pode ser objetivada ou tematizada por simples enunciados que traduzam o justo, sem se correr o risco de “trair imediatamente a justiça, senão o direito
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