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O Estado entre a lei e a norma: sobre a governabilidade em Michel Foucault

Por:   •  17/1/2018  •  Artigo  •  1.993 Palavras (8 Páginas)  •  413 Visualizações

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O Estado entre a lei e a norma: sobre a governamentabilidade em Michel Foucault

Reginaldo Junior Fernandes

Michel Foucault, em seu último capítulo de A Microfísica do Poder, discorreu sobre os problemas da relação entre o Estado e a sua população, o que denominou “governamentabilidade”. Ao modo de governo predominante no regime feudal, fundado sobretudo na figura do Rei, identificado com o conjunto dos súditos, sucedeu um processo de concentração estatal, dando origem aos grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais, e com ele, novos problemas na articulação entre este Estado e os seus nacionais, ou de outro modo, de aprofundamento da unificação nacional.

Para Foucault, pensando sobre Maquiavel (1469-1527), o Príncipe estaria em uma relação de exterioridade e de transcendência em relação ao seu principado – são unidos pela força e pela tradição, sem uma relação de continuidade fundamental entre este e aqueles. E é nesse sentido que “O Príncipe” seria um tratado sobre a habilidade de conservação de seu principado.

Haveria, contudo, em determinada literatura anti-maquiavel, uma perspectiva diferente dessa relação problemática, contemplada por exemplo, em Miroir politique contenant diverses manières de gouverner, de Guillaume de La Perriére, do séc. XVI, onde, segundo Foucault, o autor propõe o princípio da “arte de governar” como a chave da sabedoria política. Para La Perriére, contrariamente à posição de exterioridade do Príncipe em Maquiavel, as práticas de governo são múltiplas, entendidas no pai de família, no superior hierárquico, no pedagogo, etc; de modo que, em conseqüência, existem diversos governos, do qual o Governo do Estado é “apenas uma modalidade (...) Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo com relação ao Estado; multiplicidade e imanência que se opõem radicalmente à singularidade transcendente do príncipe em Maquiavel”.

No que diz respeito ao governo propriamente de Estado, Focault recorre a um outro escritor de “espelhos de príncipe”, La Mothe Le Vayer, do século XVII, para quem existem basicamente três tipos de governo, cada qual remetendo a uma forma específica de ciência, sendo o primeiro o governo de si mesmo, respeitante ao âmbito da moral, um outro que trata da arte de governar uma família, relativo à economia, e finalmente, a ciência de bem governar o Estado, com sua peculiaridade atinente à política. O que Foucault quer demonstrar com La Mothe Le Vayer é o fato de que, enquanto a perspectiva da doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do soberano postula uma descontinuidade entre o poder do Estado, personificado no Príncipe e demais formas de poder, as teorias da “arte de governar” buscam identificar “uma continuidade ascendente e descendente”.

A continuidade ascendente a que se refere Foucault remete à pedagogia do príncipe fundada nos princípios domésticos de governo de família, onde deve se governar de modo semelhante àquele que se prepara para a assunção do Estado, ou seja, deve primeiro saber se governar, governar sua família, bens e patrimônios. A relação descendente por sua vez, diz do Estado que, sendo bem governado, reflete-se no governo dos pais em seu âmbito familiar. E é nessa subsunção das condutas dos indivíduos e na gestão da família ao governo do Estado que Foucault vai identificar o que denomina de “poder de polícia” – “A pedagogia do príncipe assegura a continuidade ascendente da forma de governo; a polícia, a continuidade descendente” , cujo elemento de ligação é o governo da família, e cuja lógica deve ser regida pela economia.

A “arte de governar” transmuta-se então, no século XVIII, na “economia política” – os modos de gerir o Estado, retratado, segundo Foucault, no artigo “Economia Política” de Jean Jacques Rosseau, preocupado que estava em efetivar a transposição da noção originária de economia, enquanto o sábio governo da casa, para a gestão ao nível do Estado. O próprio significado do conceito de economia adquire outra conotação de modo que, “a palavra economia designava no século XVI uma forma de governo; no sécuo XVIII, designará um nível de realidade, um campo de intervenção do governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história. Eis portanto o que significa governar e ser governado.”

Uma vez nesse contexto, o objeto do “bem governar” já não é apenas um território e seus habitantes, de acordo com a definição jurídica consagrada no século de Maquiavel. Ao contrário, La Perriére constata que o governo não se restringe à sua materialidade territorial e sua população, mas governam-se “coisas”, que são “os homens, mas em suas relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc; os homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas de agir ou de pensar, etc; finalmente, os homens em suas relações com outras coisas ainda que podem ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a morte, etc” .

Assim, nas concepções que se opõem a Maquiavel no que tange à relação entre governo e soberania, governar é tratar de dispor corretamente as coisas para conduzi-las a um fim conveniente. No modelo “jurídico” de Estado, o governo deve ter um objetivo, para afirmar uma soberania. O bom soberano deve ter, pois, por finalidade, propiciar o “bem comum”, o que será atingido pela obediência à lei. Por corolário, temos uma tautalogia – governa-se para obter-se o bem-comum, este por sua vez, define-se pela obediência às leis emanadas do governo.

Para La Perriére, contudo, a arte de governar implica uma multiplicidade de objetivos específicos, que, se grosso modo, resume-se a promover a prosperidade da população, mais que buscar a soberania na perspectiva jurídica, o governo deve “dispor” as coisas, segundo Foucault – “utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas” . A diferença reside no fato de que a ênfase jurídica de soberania é deslocada para uma racionalidade do governo na sua relação com a “população”, tendo subsumida e como núcleo celular, a família, outrora arquétipo do Estado. É assim que Foucault, com La Perriére, opõe soberania e a arte de governar.

Essa mutação na estratégia de governo teria se processado na medida em que emergiu o problema da população como alvo da lógica da economia política, instrumentalizada pelas nascentes ciências humanas, sobretudo a estatística, que busca revelar

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