A Expansão Chinesa Recente: Estado, Capital e Acumulação em Escala Global
Por: murilofcn • 5/4/2023 • Trabalho acadêmico • 14.698 Palavras (59 Páginas) • 106 Visualizações
A Expansão Chinesa Recente: Estado, Capital e Acumulação em Escala Global
Valéria Lopes Ribeiro[1]
Introdução
Quatro décadas atrás, entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, a China iniciava um longo processo de abertura econômica com transformações profundas em sua estrutura social e impactos em todo o mundo. O processo de industrialização chinês das últimas décadas, aliado à urbanização e à modernização, permitiram o crescimento econômico do país e a condução da China à posição de uma das maiores economias do mundo[2] através da manutenção da liderança do Partido Comunista Chinês (PCC).
A consolidação do crescimento econômico coincidiu com a ampla inserção do país no capitalismo internacional, a partir do final dos anos 1970, mediante um processo de abertura econômica e transformação do modelo socialista inaugurado com a vitória da Revolução Chinesa de 1949.
A partir deste período, com a criação da República Popular da China, iniciou-se a implementação de um projeto de ascensão nacional e construção do socialismo, através de uma série de políticas voltadas à industrialização, principalmente a indústria de base e militar, que foram fundamentais para consolidar as bases do desenvolvimento chinês. Segundo Anderson (2018), tratou-se de um processo revolucionário que, ao contrário da URSS, minou gradualmente a supremacia do adversário em termos de força e controle do consentimento, quebrando o monopólio do Estado e enraizando desde muito cedo o projeto socialista na base da população, garantindo dessa forma um grau de penetração social único e duradouro.
Após cerca de três décadas desde a fundação da República Popular da China sob o comando de Mao Tsé-Tung, em fins dos anos 1970, o país entra em um período de ruptura, com a morte de Mao e a ascensão de Deng Xiaoping ao posto de maior liderança dentro do Partido. A essa altura, articulou-se dentro do PCC, a partir de Deng, a implementação de uma proposta já discutida desde meados dos anos 1960, as chamadas Quatro Modernizações (Agrária, Industrial, Defesa e de Ciência e Tecnologia). O regime socialista chinês passaria por mudanças profundas e pela ruptura de um modo de vida que vinha sendo construído desde a criação da República Popular. Entre as medidas em torno das Quatro Modernizações destacam-se: a desestruturação do regime de comunas, ainda que a terra no campo tenha permanecido como propriedade do Estado; o fim do regime estatal de proteção social, que garantia direitos aos trabalhadores do campo e principalmente das cidades, via fornecimento gratuito de bens como educação e saúde para todos; um processo de diversificação da propriedade, com o fim do monopólio da propriedade estatal e coletiva e o início das privatizações; e ainda a abertura comercial mediante a reaproximação do país com os EUA, com a inserção nas cadeias produtivas asiáticas e globais.
Esta transição econômica ocorreu mediante a manutenção do poder político do PCC e o controle do Estado sobre a economia, mas em um cenário de abertura e integração internacional, conformando a trajetória de crescimento econômico via investimentos, principalmente estatais, exportações, importação de tecnologia e atração de investimentos estrangeiros diretos.
Assim, a trajetória chinesa a partir de Deng representou a vitória de uma linha política presente dentro do PCC, a partir da qual se defendia o desenvolvimento das forças produtivas como prioridade, em contraposição ao desenvolvimento das relações de produção. Esta polarização já estava presente ainda em meados nos anos 1960 e irá compor uma dimensão importante dos acontecimentos da Revolução Cultural. Naquela ocasião, a disputa em torno do aprofundamento da construção do socialismo, mediante práticas para além do desenvolvimento das forças produtivas, ganhou contornos de uma crítica profunda à burocracia estatal, levando à mobilização popular ampla e esforços no sentido do controle político pela base (Badiou, 2020; Bettelheim, 1979; Motta, 2013).
A ascensão de Deng ao posto de grande líder da China consolida de certa forma a vitória da opção chinesa pelo desenvolvimento das forças produtivas, em detrimento do avanço das relações de produção. A partir de uma crítica profunda ao período da Revolução Cultural, os veteranos dirigentes do PCC irão compor a força política hegemônica que combaterá as chamadas “tendências esquerdistas”. Como afirma Souza (2018), tendo como referência o livro Breve História do Partido Comunista da China, após a morte de Mao, o PCC constrói sua visão sobre a China a partir de um tom geral, apesar dos cuidados, de crítica à teoria e à prática da ‘revolução cultural’ e dos métodos de Mao Tsé-Tung, que “teriam sido completamente equivocados”. As ideias de Mao sobre o socialismo seriam “utópicas, desligadas da realidade” (Oficina, 1994, apud Souza, 2018, p. 31).
Segundo Bettelheim (1979, p.179), “no fim de 1976, um novo curso toma forma, correspondendo à vitória de uma linha revisionista e da burguesia existente no interior do Partido”. A partir de então, Deng Xiaoping irá materializar com sucesso a visão de que, para superar a situação de crise e avançar rumo à modernização e à prosperidade, a China deveria seguir a direção das reformas e da abertura econômica.
Assim, ao longo dos anos 1980, as reformas caminharam a todo vapor, com a dissolução das comunas, a criação das Zonas Econômicas Especiais e a privatização de alguns setores da economia, instaurando avanços e também contradições na sociedade chinesa. Já no final da década, frente ao que poderia se apresentar como uma nova disputa interna e cisão social com os protestos na Praça da Paz Celestial, Deng articula novamente sua visão dentro do Partido mediante o chamado “grande compromisso” (Marti, 2007). Nessa ocasião, através de uma aliança com as elites internas (principalmente costeiras) e o Exército, Deng defende a continuidade do projeto de abertura e o avanço das forças produtivas mediante a manutenção do modelo político centrado na liderança do PCC (Marti, 2007).
Dessa perspectiva, a trajetória de expansão e crescimento econômico da China nas últimas décadas pode ser vista como a expressão da construção de um caminho que, embora baseado na permanência da centralidade do Estado, também representa um rompimento, mais do que continuidade, com o modelo socialista que vigorava anteriormente.
Assim, contrariamente ao que afirma Losurdo (2004), – para quem as reformas de Deng Xiaoping são vistas como um novo pacto nacional que une novamente as classes internas (burguesia e proletariado) na defesa da luta anticolonial e em prol do nacionalismo e do socialismo – as reformas econômicas e o movimento de retomada das relações com os Estados Unidos representaram uma opção política que certamente conduziram a China para a afirmação de um projeto nacional, mas também um rompimento com a construção socialista, e a cada vez maior integração do país ao capitalismo internacional.
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