Por Uma Nova Abordagem Para Os Arquivos Pessoais: Os Usos Da Informação Arquivística Pela Fundação Darcy Ribeiro
Por: Ellen Monteiro • 24/2/2023 • Projeto de pesquisa • 7.727 Palavras (31 Páginas) • 69 Visualizações
O texto a seguir apresentará um plano de dissertação de mestrado em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação do prof. Dr. Marcio Goldman. O objetivo geral desta dissertação é apresentar o levantamento etnográfico realizado junto a um grupo “reconhecido” como “comunidade remanescente de quilombo[1]” em dezembro de 1999, assim como a possibilidade de utilização desses dados como subsídio para uma reflexão crítica a respeito dos conceitos antropológicos de “etnicidade” e “identidade étnica”, normalmente empregado na análise das chamadas “comunidades negras rurais”. São José, à primeira vista, se encaixa na classificação geral de “comunidade negra rural” encontrada em estudos antropológicos acadêmicos, em laudos de identificação produzidos por antropólogos sob encomenda da Fundação Palmares, bem como nos debates que antecederam a aprovação do artigo constitucional[2].
No entanto, uma abordagem de São José tendo como viés essa noção só se justifica para aplicação do dispositivo constitucional, principalmente por conta da relevância dada nos estudos acadêmicos a certos conceitos aí embutidos. No caso específico de São José, bem como em outros, termos como “etnicidade” e “identidade étnica” fazem parte do senso comum de boa parte dos atores envolvidos na disputa judicial iniciada após o “reconhecimento” como Remanescente de Quilombo. Foram apropriados e são utilizados como estratégia no embate jurídico com o fazendeiro.
E, finalmente, ficar preso a essa noção pode levar o pesquisador a não perceber quais aspectos de sua própria história são relevantes para o grupo e mesmo até que ponto e com que objetivos essa noção é aceita, partilhada e utilizada por esses atores.
a)Primeiro contato: o “problema da terra” e o “tambu”
Em maio de 2000 visitei a Fazenda São José pela primeira vez. Nessa época eu trabalhava num projeto ligado a uma organização não governamental que pretendia levantar, no estado do Rio de Janeiro, as ‘comunidades negras rurais’ que pudessem ser contempladas pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Nessa primeira visita, minha anfitriã, muito timidamente, disse-me que havia um “processo” envolvendo a terra e que o fazendeiro, em função disto, estava implicando com as visitas que os colonos estavam recebendo. Disse também que não podia explicar mais nada porque já tinham dito a ela para não ficar “dando entrevista”. Fomos bem recebidos e depois de alguns cafés e conversa nossa anfitriã explicou que o dono da fazenda estava implicando com as visitas que os colonos estavam recebendo e que havia um processo envolvendo as terras da fazenda. Disse que só sabe o que “o povo diz, que a terra não podia ter sido vendida”, e que por isso começou uma confusão. Ela parecia ter receio em falar algo que não devia e o tempo todo mudava de assunto.
No final da tarde houve um ensaio de “tambú” (também conhecido como jongo ou caxambu) para uma “apresentação” no Encontro Cultural de Valença que aconteceria no dia seguinte. Em torno de uma roda dois rapazes batiam tambores e Tia Tereza entoava pontos. Enquanto isso, no meio da roda, um casal fazia evoluções.
Em apenas um final de semana vivenciei acontecimentos que se repetiriam muitas vezes ao longo desses quatro anos que me separam desse primeiro contato: apresentações de ‘tambú’ e preocupação com o ‘problema da terra’. Uma das lições que pude extrair é que no contato com os “de fora” sempre fica a impressão de que suas vidas resume-se ao problema envolvendo a terra e às apresentações de tambú dentro e fora da fazenda. O que explica esse fato é menos o interesse dessas pessoas por esses assuntos e mais o que eles pensam sobre qual seja o interesse das pessoas de fora. Fácil de ser entendido já que o trânsito intenso de pessoas estranhas ao local só passou a ocorrer após e por causa desses acontecimentos. Como bons anfitriões, eles oferecem aos hóspedes aquilo que acham que lhes interessa. Tão logo perceberam que eu estava interessada em outros aspectos de suas vidas, a nossa relação mudou.
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Na minha segunda visita, fiquei hospedada em uma outra casa. Aí, podia perguntar abertamente sobre o problema relacionado com a posse da terra. Tetê e sua mãe, as donas da casa, me relataram vários eventos relacionados à briga na justiça. Passei a conhecer os nomes dos principais personagens envolvidos com essa história. Como Toninho Canecão que, assim como Tetê, é filho de Mãe Firina, a mãe de santo que junto com seu irmão, Manoel Seabra, comanda o Centro de Umbanda local.
A partir dessas duas visitas passei a freqüentar a fazenda mais assiduamente, com períodos mais extensos de permanência. Também compareci a encontros culturais com o intuito de encontrar seus moradores. Em março de 2001 ingressei no mestrado no Museu Nacional e me desliguei da ong em que trabalhava. Permaneci um mês e meio na fazenda durante as férias de 2002 e posteriormente mais um mês e meio entre julho e agosto desse mesmo ano, com objetivo de elaborar uma dissertação de mestrado. A permanência mais prolongada junto deles me fez perceber que os moradores dessa fazenda estão bem pouco preocupados, no seu dia-a-dia, com todas aquelas questões que nas minhas primeiras viagens parecia preenchê-los completamente, como o reconhecimento como Remanescente de Quilombo, os ensaios de tambú ou mesmo as visitas do fazendeiro. Além das atividades diárias comuns a todos os seres humanos, como o cuidados com as crianças ou a busca por alimentos, que ocupam nossos amigos o dia inteiro, há sim uma atividade que não é diária, não é constante, mas é onde o grupo se reafirma enquanto tal diariamente: a cura das doenças e dos males que acometem o corpo e a mente. Essa é a única atividade social dentro da fazenda São José levada a cabo, necessariamente, por vários membros ao mesmo tempo. Várias atividades são realizadas em conjunto, como a organização de festas, ou o deslocamento para Santa Isabel mas somente as “sessões” destinadas às curas possuem o estatuto de “missão” e são necessária e obrigatoriamente realizadas por vários membros do grupo. Acredito que entender a relação das pessoas com Mãe Firina, a líder religiosa, é condição para se entender porque foi possível a assunção de São José à condição de Comunidade Remanescente de Quilombo, com as inúmeras desavenças do grupo com o proprietário legal que daí adveio.
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