Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas (Resumo)
Por: caiomishima • 24/4/2017 • Resenha • 1.699 Palavras (7 Páginas) • 452 Visualizações
Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas(Resumo)
Flávia Biroli
Grupo: Caio Mishima,Rafael Grossi, Pedro Henrique Matos e João Victor B.
O debate sobre aborto se define em disputas concretas em torno do direito ao aborto1. Abordagens teóricas e posições políticas são construídas diante de um fato, a prática do aborto voluntário, e diante de valores políticos que ganharam novas configurações e tiveram sua relevância ampliada nas sociedades contemporâneas relativamente a outros períodos históricos. Entre esses valores, destaco a autonomia individual, com foco específico na autonomia das mulheres, e a laicidade do Estado. Ainda que se observe apenas o mundo ocidental, as ações do Estado nos domínios da reprodução e da sexualidade, assim como os limites entre a laicidade do Estado e a atuação política das igrejas, assumiram diferentes padrões ao longo do tempo e em diferentes sociedades, mobilizando ou confrontando de maneiras distintas os valores mencionados. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em estimativas divulgadas em 2012, 22 milhões de mulheres em todo o mundo se submetem, anualmente, a abortos inseguros. É importante ter clareza de que a questão não é a realização do aborto, mas quem decide, e em que circunstâncias, sobre a sua realização. Perspectivas eugênicas estiveram na base de propostas de flexibilização nas leis que criminalizavam o aborto na América Latina no início do século XX Entre as mulheres pobres, negras e indígenas da América, o racismo e o controle populacional fundamentaram políticas de controle que promoveram a esterilização - realizada em grande escala em meados do século XX adotadas como políticas de Estado até muito recentemente, como no Peru de Alberto Fujimori, já nos anos . A afirmação da autonomia das mulheres para decidir sobre a interrupção da gravidez é, assim, algo que toca em questões que não se restringem ao aborto, mas ao funcionamento da democracia, aos espaços e formas da regulação do Estado, às hierarquias e formas toleráveis da dominação, aos direitos individuais e à relação entre todas essas questões e o princípio da laicidade do Estado. A autonomia das mulheres está, assim, no centro das disputas relativas ao aborto.
A decisão individual sobre recorrer ou não a um aborto pode ser definida como uma decisão de caráter moral. Isso significa, basicamente, que há questões moralmente problemáticas em jogo, valores relevantes para o indivíduo que serão considerados em sua decisão. Esses valores poderão estar na base das motivações de uma mulher para manter uma gravidez indesejada, uma gravidez relativamente à qual tem sentimentos e julgamentos ambíguos, uma gravidez que frustre o que entende como condições adequadas de vida para si ou para os indivíduos que lhe são próximos. Alguns exemplos são o valor moral da maternidade, valores relativos ao sexo e à sexualidade e, de maneira mais ampla e mais complexa, entendimentos específicos (e variáveis) sobre o que confere valor à vida. Os avanços históricos nas garantias aos direitos individuais tiveram como uma de suas linhas de força a vinculação entre tolerância e laicidade do Estado, em outras palavras, a separação entre religião e política. Sem ela, a ideia de que o respeito aos indivíduos inclui o respeito a seu julgamento sobre o que é importante para si perde força e sentido. Compreensões da maternidade, concepções determinadas da família, entendimentos sobre como se expressam a solidariedade e a bondade humanas, ou a ideia de que um embrião fecundado é a expressão da vontade de uma entidade supra-humana, têm peso e relevância variáveis na vida de diferentes indivíduos. Quando são mobilizadas para impor, aos indivíduos, uma forma de vida que não condiz com os valores que assumem como seus, há uma ruptura com a noção de individualidade que se constitui a partir desses marcos.
A tradição liberal permite sustentar o direito ao aborto como direito à autodeterminação, com enfoque na soberania do indivíduo sobre seu próprio corpo. Entendo que esse passo é não apenas relevante neste debate, mas incontornável. As abordagens feministas do aborto se definem em diálogo com as premissas baseadas nas noções liberais do direito dos indivíduos a dispor sobre seu corpo e são sem dúvida devedoras dos avanços que o liberalismo permitiu na construção de uma agenda - disputada e sem dúvida contraditória em muitos sentidos - para a garantia dos direitos individuais. Mas, ao problematizar o aborto a partir das experiências concretas e situadas das mulheres, essas abordagens tensionam os limites das noções liberais de indivíduo e de autonomia, iluminando dimensões da problemática do aborto que não são enfrentadas de maneira adequada e têm mesmo sua validade negada nos enquadramentos liberais. Na contramão dessa recusa aos direitos individuais das mulheres, as abordagens feministas do aborto se situam, ao mesmo tempo, no registro liberal desses direitos e no de críticas que tensionam a tradição liberal ao tomar como ponto de partida a posição social concreta das mulheres. A afirmação do direito de escolha, conjugada à do direito ao corpo, é pensada, assim, a partir de premissas características dos enfrentamentos e problematizações na teoria feminista: a noção liberal de indivíduo, que é fundamental em muitos sentidos para garantir direitos básicos de cidadania às mulheres, apresenta limites quando é tomada em termos abstratos. Se, por um lado, pode ser estratégica para superar diferenças entre mulheres e homens (e entre as mulheres) - superando as implicações da atribuição de sentidos distintos ao corpo das mulheres e ao dos homens e os obstáculos à participação das primeiras na vida pública por serem mulheres -, a concepção abstrata dos indivíduos pode servir para justificar desigualdades na medida em que não enfrenta as diferenças nas vivências de umas e de outros em sociedades nas quais o gênero é uma variável central na definição da posição relativa dos indivíduos. Em outras palavras, o problema se coloca porque a universalização dos direitos, que está sem dúvida além das normas atuais relativas ao aborto no Brasil hoje, não permite confrontar obstáculos à construção da igualdade de gênero que permanecem a despeito dela. Quando a universalidade é definida como suspensão das particularidades, são suspensos aspectos relevantes das diferenças atuais entre mulheres e homens, diluindo assim problemas que incidem sobre as mulheres por serem mulheres, em sociedades nas quais o gênero é uma dimensão importante das posições e das vantagens dos indivíduos. O ponto para esta discussão é que o contexto concreto em que as escolhas, e as motivações, se definem passa a ser incontornável. Por um lado, isso e necessário para situar as escolhas no âmbito da justiça, discutindo as condições em que se efetivam e suas consequências. Por outro, desloca o problema do registro da variedade das concepções individuais de bem para o da construção de uma ética fundada nas experiências diferenciadas, nesse caso nas experiências diferenciadas das mulheres na sociedade.
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